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“MARIA CALLAS” – Maria e La Callas [48 MICSP]

Se especializando em cinebiografias heterodoxas (leia-se, não abrangentes nem lineares), Pablo Larraín demonstra uma predileção por mulheres famosas com um histórico de lamento, como em “Jackie”, sua melhor obra, e Spencer, também muito boa. MARIA CALLAS segue essa tendência de sua filmografia, porém com uma figura cuja vida pessoal é de menor conhecimento público, abrindo margem para talvez ir além dos fatos – o que não necessariamente é ruim.

Aclamada como uma das maiores, talvez a maior, cantoras de ópera da História, Maria Callas é o objeto do estudo biográfico do longo. Nascida em 1923 e falecida em 1977, em Paris, seus últimos dias são reimaginados junto a recordações de uma vida tumultuada.

(© Diamond Films / Divulgação)

A política é objeto comum das obras de Pablo Larraín, como em “Neruda” e O conde (tratando de Pablo Neruda e Augusto Pinochet), além das duas biopics mencionadas (focadas, respectivamente, em Jacqueline Kennedy e Diana, Princesa de Gales), mesmo que de forma periférica. A associação desses cinco nomes com a política é natural, o que não ocorre com Maria Callas, cuja associação automática é com a música. O filme traz trechos de suas árias mais célebres, como “Casta diva” e “O mio babbino caro”, mas não se trata de um musical. Pelo contrário, o retrato apresentado é de uma cantora que muitas vezes se recusa a cantar e que sabe que perdeu sua voz.

Com isso, as cenas em que ela canta aparecem em uma montagem que alterna entre o presente e o passado diegéticos, em subjetividade mental, e com uma fotografia em preto e branco. Em outras palavras, quando ela canta, muitas vezes o som impecável é fruto da sua memória de uma apresentação marcante, não do canto real (já que sua voz não é mais a mesma), o que é representado graficamente pela alternância passado-presente e pelo preto e branco. Há, porém, duas exceções a esse padrão, quando a cantora se sente livre dos grilhões que a atormentar no passado.

A alternância da montagem faz parte também da estrutura do roteiro. Repetindo a parceria com Larraín em Spencer, Steven Knight elabora um script em que as recordações são fragmentadas, parecendo memórias dolorosas de um tempo em que Callas tinha fama e sucesso, mas não era feliz – se é que um dia foi. A principal ferramenta do roteiro é a subjetividade mental, uma vez que a visitação feita às memórias ocorre através de uma entrevista da cantora que ocorre por uma alucinação da sua psique (resultado dos remédios que toma, o que motiva o nome do entrevistador). Mais do que isso, em uma inteligente metalinguagem diegeticamente imaginária, a protagonista se sente como objeto de um documentário filmado sobre a sua vida, então a estrutura do longa, muitas vezes, adota o ponto de vista desse (falso) documentário (usando, por exemplo, câmera subjetiva e câmera na mão).

Nem tudo ocorre, porém, no contexto do (imaginado) filme dentro do filme. Também no presente diegético ocorrem as tentativas de Callas em voltar a cantar e as agradáveis interações com o seu mordomo, Ferruccio (Pierfrancesco Favino), e sua governanta, Bruna (Alba Rohrwacher), cujo relacionamento praticamente familiar é admitido por ela (e demonstrado, por exemplo, na cena em que jogam cartas, além do cuidado diário com a saúde da patroa). Nessas ocasiões, destaca-se o design de produção (a luxuosa casa e seus recintos amplos, os vestidos, as estátuas, a arquitetura renascentista), bem como, novamente, a fotografia, cujos tons quentes da paisagem outonal (o amarelo, em especial) destoam do tom quase lúgubre da própria protagonista. Angelina Jolie vai bem nos momentos dramáticos do papel, traduzindo o melodrama que impera no longa (o que é reforçado por sua figura magérrima), assim como nas cenas em que La Callas é a diva que todos admiram. Contudo, a atriz deixa a desejar ao dublar as músicas, abrindo pouco a sua boca nos momentos necessários.

Depressivo como a protagonista, “Maria Callas” não é uma cinebiografia abrangente, mas um olhar subjetivo a partir de um suposto olhar subjetivo da própria vida. Cabe recordar o quanto a subjetividade é relevante, material e formalmente, no longa. Não se sabe o quanto daquilo é verídico (e não precisa sê-lo), mas demonstra uma insatisfação coerente com os fatos (ainda que não estrita e necessariamente fiel) e, principalmente, com a diferença entre as duas pessoas que habitavam o mesmo corpo. Larraín convence, ao final, que Maria e La Callas não eram a mesma pessoa.

* Filme assistido durante a cobertura da 48ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).