“MANIAC” – A imaginação narrativa
Boas histórias não precisam, necessariamente, ter uma ideia completamente original. Uma abordagem particular com identidade própria pode atingir o mesmo objetivo. É a direção seguida por MANIAC, minissérie original Netflix, graças aos trabalhos do criador Patrick Somerville, do diretor Cary Fukunaga e dos atores Joanh Hill e Emma Stone.
Na minissérie, Owen é um jovem rico, esquizofrênico e que tem problemas de relacionamento com a família. Annie é uma jovem viciada em drogas e que sofre com uma perda em sua família. Eles decidem se inscrever em um tratamento experimental que promete curar qualquer dor através de uma nova droga fabricada para compreender e agir sobre a mente humana. A experiência, contudo, começa a apresentar problemas inesperados quando uma inusitada conexão se forma entre os dois.
O argumento proposto por Patrick Somerville e Cary Fukunaga consiste na busca humana por conexões com outras pessoas, mesmo inconscientemente. Esse tema já aparece na abertura com a apresentação de uma animação relacionando o surgimento e a evolução da vida humana às ligações interpessoais (o caos aparente da existência na Terra, na realidade, seguiria uma ordem, um padrão desconhecido pela humanidade). Os dois primeiros episódios também cumprem a função ao mostrar os prejuízos da solidão para os dois protagonistas: ambos são solitários, têm problemas de socialização (Owen não se sente à vontade com seus familiares e Annie prefere se drogar a interagir com seus companheiros de apartamento) e de saúde (Owen alucina vendo um suposto irmão e Annie se torna dependente química para tentar aliviar um luto mal resolvido).
A condição psicológica dos personagens pode ser igualmente observada pelos discretos movimentos de câmera de Fukunaga, porém muito expressivos. Ao movê-la sutilmente na horizontal, o cineasta revela informações importantes do quadro, aparentemente escondidos: o transtorno mental de Owen simbolizado pela forma como ele monta o cubo mágico embaixo da mesa onde está; e a caminhada de Annie pelas ruas repletas de propagandas eletrônicas nos outdoors sobre a necessidade de se relacionar com alguém para ser feliz. A mesma solidão aparece em detalhes presentes no design de produção: uma foto de Owen emoldurada sozinha na parede de casa ao lado de uma foto de toda a família, exceto por ele; e a sequência em que, enquanto Annie diz querer fazer algo normal, como viajar e ler, ela pega o livro “D. Quixote“, cujo protagonista enxergava a realidade de maneira nada ortodoxa.
Entretanto, quando o tratamento começa, o material eleva sua qualidade. Um experimento comandado por uma grande empresa decidida a extinguir dores humanas através de três doses de uma nova substância que estimulariam a mente dos pacientes a enfrentar o que os aflige pelo choque. Do terceiro episódio até o final, Owen e Annie vivenciam realidades imaginadas por eles de forma conjunta (apesar da expectativa do teste serem experiências individuais), nas quais objetos, pessoas e situações de suas vidas reais aparecem adaptados com novos sentidos (a montagem fluida alterna muito bem entre as narrativas imaginadas e a vida real, misturando com clareza elementos originados das realidades distintas). Fukunaga, nos momentos imaginativos, altera constantemente seu estilo e filma os pequenos núcleos com grande liberdade criativa e de acordo com gêneros diferentes : há “histórias” de comédia nonsense, de fantasia, de espionagem, de gângster, de suspense e também uma câmera dinâmica (como se percebe em um plano-sequência de um tiroteio em um corredor).
As mudanças no tom da narrativa se tornam orgânicas também devido às construções de personagens feitas por Jonah Hill e Emma Stone. Eles traduzem de forma específica os detalhes de sua solidão, seja a introspecção e o pânico internalizado de Owen, seja a explosão de sentimentos incontrolados de Annie. Ambos não somente encarnam com qualidade dramática inesperada os desafios de indivíduos complexos, como também transitam entre as diferentes camadas de personagens que surgem nas histórias evocadas pelo tratamento mental (é possível, inclusive, afirmar que eles interpretam quatro ou cinco personagens na minissérie): por exemplo, Jonah Hill compõe tipos mais confiantes, comicamente atrapalhados ou excêntricos com sotaque estranhíssimo; e Emma Stone constrói uma femme fatale, uma mulher de impulsos criminosos e uma elfo de personalidade forte de liderança.
A descrição da tecnologia daquele contexto oferece diversas outras ricas possibilidades de análise. O design de produção imagina um futuro próximo à atualidade, tendo alguns artigos que mostram a evolução tecnológica (um simulador de relações sexuais, um robô limpador das ruas e anúncios eletronicamente divulgados em outdoors). Já no experimento retratado, existe um sistema computadorizado que comanda cada uma das etapas e é estabelecido em referência ao HAL 9000 de “2001-Uma odisseia no espaço“: Gertie é uma máquina movida por sentimentos implantados que se desdobraram em crises sentimentais e existenciais comprometedores da experiência (é curioso também observar a iluminação rosa e os traços gráficos das luzes em seus botões que a “humanizam” e lhe dão uma personalidade feminina).
Transcorridos os dez episódios, o sentimento de estranhamento provavelmente surgido das escolhas narrativas e estéticas da minissérie não pode obscurecer as qualidades do universo criado. A parceria entre Patrick Somerville e Cary Fukunaga na definição do estilo técnico e as atuações de Jonah Hill e Emma Stone produzem um projeto ambicioso e profundo. Adjetivos nada gratuitos porque são orgânicos a um tema tão complexo como o das dores humanas. E quando se fala nas angústias da humanidade, conectar-se a alguém sempre será melhor do que uma suposta tecnologia revolucionária.
Um resultado de todos os filmes que já viu.