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“MAIS PESADO É O CÉU” – Cadáveres sem morte

Tereza e Antônio conversam após mais um dia de misérias e sofrimento enquanto um bebê dorme ali próximo. Eles falam sobre as ruas, as praças e as casas vazias de uma cidade abandonada como um cemitério sem defuntos. Se MAIS PESADO É O CÉU for o cemitério dessa analogia, os protagonistas são cadáveres que ainda não morreram. Isso porque a jornada deles é muito mais a purgação sem fim de pecados e dores do que uma transformação rumo ao crescimento pessoal.

(© Sereia Filmes / Divulgação)

Antônio e Tereza têm a antiga cidade de Jaguaribara em comum. O lugar, no interior do Ceará, foi inundado por um açude e a população teve que deixar a região. Os dois personagens viveram e saíram da cidade, passaram por outras experiências fora do seu estado natal e se reencontraram tempos depois. Ela acolheu uma criança abandonada enquanto se dirigia à Fortaleza em busca de uma vida melhor, ele planejou ir até um amigo no interior para participar de um negócio de caranguejos. Eles se conhecem e percorrem as estradas interioranas tentando sobreviver quando tudo se coloca contra.

O diretor Petrus Cariry faz dessa jornada um road movie que, a princípio até pode se enquadrar nas convenções do subgênero, mas logo subverte suas características. Em geral, o filme de estrada parte de um local que, por alguma razão, maltrata os personagens e os coloca em movimento em busca de algo melhor ao final da viagem. O ponto de partida aqui segue a mesma lógica: Antônio e Tereza tentam deixar para trás um passado incômodo, tanto por suas experiências dolorosas anteriores (sentidas por eles e pelo público, embora não explicitadas verbalmente) quanto pela devastação de Jaguaribara. Então, o passado é uma assombração que não desaparece, o que fica evidente pela forma como Tereza se lembra dos últimos dias na cidade e pelos constantes planos das águas do açude sobre extensas porções de terra. É como se o cineasta buscasse colocar o peso daquilo que já ocorreu sobre os ombros do espectador.

Da mesma maneira que o passado não é agradável, o presente não se diferencia tanto ou pode ser até pior. Logo, as primeiras quebras com o estilo do road movie surgem. A importância transformadora do percurso trilhado não se faz sentida ou não direciona para qualquer melhoria. Os protagonistas lidam com uma realidade de carência, brutalidade e desesperança em cada metro percorrido. É um cenário marcado pela falta de leite para o bebê e de alimentos para os adultos, pela dificuldade de obtenção de um trabalho bem remunerado, pelas noites mal dormidas à beira da estrada, pelos grandes obstáculos ao planos de futuro e pela violência encontrada a cada novo veículo no caminho. Tais agruras desencadeiam as vulnerabilidades de Antônio e Tereza: ele precisa pedir esmolas na estrada, esperar a volta da mulher enquanto cuida como pode da criança e cede às próprias necessidades ao tomar o pouco de leite deixado para o menino; ela expõe o próprio corpo em troca de alguns trocados, inicialmente apenas para uma exibição voyeurística, em seguida, para atos sexuais arriscados para sua própria segurança.

Ao redor dos dois personagens, todos os ambientes parecem arruinados e sem vida. Os méritos ficam por conta da encenação do cineasta, capaz de fazê-los ser expressivos e interagir com Antônio e Tereza como símbolos de uma existência insalubre. Em uma casa abandonada que ocupam, o imóvel parece um fantasma graças à trilha sonora e a decupagem dos cômodos deteriorados e dos retratos dos antigos moradores, que faz referência à ideia do passado como assombração. Na estrada em volta do pequeno vilarejo onde se estabelecem, o movimento constante dos veículos contrasta com a natureza morta das terras áridas e da vegetação desolada, algo que sugere a propagação da morte por cada canto da cidade. E como uma presença constante a oprimir o casal, há o céu límpido coberto de nuvens que não precisa anunciar uma tempestade para se fechar sobre eles e retirar qualquer senso de liberdade porque a decupagem o faz preencher todo o quadro em muitos momentos. Naquelas condições, Tereza e Antônio são colocados em um dos cantos do quadro ou centralizados na imagem, duas dinâmicas visuais que inferiorizam os indivíduos e engrandece um cenário hostil.

Petrus Cariry, então, transita de ambientes sem vida para protagonistas que estão perdendo traços de humanidade ou de vida a cada dia. Ana Luiz Rios e Matheus Nachtergaele encarnam figuras que podem ter suas próprias particularidades, mas se encontram nas frustrações e em distorções morais. A atriz interpreta Tereza como alguém que costuma ocultar traços de sua personalidade ou de sua trajetória como autoproteção ou elemento típico de quem ela é, como fingir que o bebê que encontrou era seu filho. E o ator interpreta Antônio como alguém que busca ajudar até quem não conhece e divide momentos de sua vida com desconhecidos sem preocupação com o que pode ocorrer. Mesmo com as diferenças, eles se aproximam e um influencia o outro a partir de seus projetos de futuro e das infelicidades do presente. Conforme o tempo passa, os dois caem em uma espiral de melancolia e pessimismo, que se reflete na fala de Tereza de que viver é cansativo e nas especulações de Antônio sobre o que acontece após a morte, causada pelas dificuldades de sobreviver diante de graves adversidades.

É verdade que o presente possui alguns instantes de alívio ou pessoas solidárias pelo caminho. Fátima tem um pequeno restaurante no interior e acolhe Antônio, Tereza e o bebê, ajudando com o leite para alimentar a criança, uma moradia para servir de abrigo para o trio e conselhos para dar algum ponto de equilíbrio em meio a vários percalços. Letícia trabalha em um posto de gasolina e se torna uma amiga para Tereza, dando dicas de possíveis empregos para tentar uma vaga, sugerindo os melhores produtos para comprar no local e sendo uma escuta sensível aos problemas para servir como fonte de apoio. Apesar disso, o presente se impõe como um tempo de carências e necessidades que fecham o horizonte de expectativas para o futuro. Nos momentos em que sentimentos positivos poderiam aflorar, como o canto de uma música e uma relação sexual, há a percepção de que o prazer é forçado, interrompido rapidamente ou ausente em ações automatizadas. A própria estrada sugere que eles não conseguiriam deixar para trás aquelas condições adversas porque, mesmo quando se separam, voltam a se encontrar naquela área como se estivessem andando em círculos e uma fuga completa fosse inviável.

Mais pesado é o céu” tem um domínio tão interessante das locações que esses espaços são elementos chave na narrativa e aparecem no terceiro ato como desfechos simbólicos dos conflitos dramáticos dos personagens centrais. As águas do açude ainda cobrem as terras da antiga cidade cearense como marcas de um tempo que não volta mais, a estrada é um ponto de passagem que tanto deixa Antônio e Tereza estagnados quanto representa espacialmente as divergências entre eles e o céu oprime os dois como se fosse outra espécie de oceano grandioso se estendendo sobre tudo ao redor. Nas duas últimas cenas, a construção do plano faz o céu tomar conta do quadro e a focalização dos protagonistas de baixo para cima deixa a natureza engolir tudo. Assim, os dois últimos momentos de violência retratam o desespero de vidas brutalizadas e o questionamento feito por Antônio sobre o destino de ambos. Desse modo, o filme se torna um anti-road movie porque a jornada não é transformadora e o ponto final da viagem é similar aos sofrimentos anteriores.