“MAESTRO” – Uma biografia sem a vida, um músico sem suas músicas, um romance sem o amor [47 MICSP]
De acordo com Leonard Bernstein, “uma obra de arte não responde a perguntas, ela as provoca”. O excerto faz parte de uma frase que aparece no começo de MAESTRO e pode fazer sentido para o filme. De fato, a produção não responde a pergunta alguma e faz com que o público elabore questões. Mas não é esse o contexto que ele pensava com tal afirmação.
O filme mostra a história de amor entre Leonard “Lenny” Bernstein (1918-1990) e Felicia Montealegre Cohn Bernstein (1922-1978). Ele foi compositor e maestro; ela, atriz. Os dois se encontraram na arte e desenvolveram um romance conturbado à medida que desenvolveram suas carreiras e constituíram família.
Bradley Cooper é o produtor, diretor, corroteirista (junto de Josh Singer) e interpreta o protagonista da película. As maiores virtudes da produção, contudo, estão na atuação de Carey Mulligan no papel de Felicia e no esplendoroso trabalho de maquiagem. No segundo quesito, o visual da dupla é modificado gradualmente, de acordo com o momento em que vivem, com um naturalismo impressionante. Quanto a Mulligan, Cooper praticamente repete o que fez com Lady Gaga em “Nasce uma estrela”: o desempenho da atriz seria ainda melhor com uma personagem melhor construída. Como naquela oportunidade, há problemas de roteiro: a cena essencial, em que Lenny e Felicia brigam, não há compatibilidade entre o que ocorre e o que é dito. O ódio a que ela se refere, para depois dizer que foi extirpado, é contraditório aos atos perpetrados por ele. Ainda assim, Mulligan supre o texto com uma atuação excelente, transmitindo mais sentimento que o texto oferece.
São vários, aliás, os problemas do script. O subtexto do antissemitismo é discretíssimo, surgindo no início e em uma conversa literalmente abandonada. Outro abandono é o de David, personagem que Matt Bomer parece querer entregar com qualidade, mas que é usado conforme a conveniência da narrativa para tentar criar algum conflito, em vão. David surge e some praticamente de maneira aleatória. O conflito do roteiro surge somente depois de quase uma hora de filme, com Tommy (Gideon Glick). Antes disso, as cenas são esparsas e incapazes de constituir uma narrativa, mas conversas com frases de efeito brevíssimas. Cooper é incapaz de criar contexto para as cenas do longa, criando, ao invés disso, pretextos para algo ser dito. É o que ocorre quando o assunto é estar à sombra de Lenny, uma divagação que surge sem explicação e rapidamente se esvai, ou quando o maestro fala sobre liberdade antes de um ensaio, novamente sem contexto algum, apenas como pretexto para justificar a liberdade que ele passou a se dar.
As frases de efeito normalmente surgem em entrevistas, como na fala de que “o mundo está à beira de um colapso” em razão de uma alegada falta de criatividade. Não é preciso dizer que, geralmente, não há contexto – é “filosofia de boteco” -, salvo em uma importante elipse. Nessa elipse, há o grave erro de ferir o “show, don’t tell” (onde está a construção das carreiras de Lenny e Felicia?). Cooper confunde o subentendido com a lacuna, não sendo claro sobre os “boatos” que Jamie (Maya Hawke) teria ouvido, tampouco sobre o relacionamento entre Lenny e Felicia. É incoerente que o casal use de meias palavras mesmo ao discutir o relacionamento, enquanto ele age com naturalidade ao ser flagrado. Parece haver um receio de verbalizar a situação, enevoando um cenário de maneira contraditória (ou ele trata naturalmente, ou o assunto vira tabu para o casal, não os dois).
Há em “Maestro” uma acentuada falha de ritmo. Por exemplo, a cena dramática em que Lenny fala com Jamie ao telefone é melancólica pela situação e pelas atuações, não por uma construção convincente. São diversas as elipses – que recebem características gráficas, na fotografia, bastante óbvias e desnecessárias – que diluem muito conteúdo, acabando com qualquer possibilidade de organicidade na progressão narrativa. É tudo rápido demais, a ascensão da carreira e o romance explodem às custas de um romance anterior escanteado, prejudicando a parte biográfica da obra. De nada adianta uma maquiagem formidável e um empenho na atuação de Cooper (ignorando o sotaque carregado demais, o emagrecimento e a mudança de timbre vocal são circunstâncias favoráveis) se, por exemplo, a mudança de postura (egoísta para altruísta) é tão repentina que parece imotivada.
Sendo o protagonista um músico, é de se esperar um bom uso de suas composições e apresentações. Entretanto, o filme é majoritariamente decepcionante nesse sentido; quando Lenny afirma que deve ter “apagado” sua primeira apresentação como maestro substituto, deve ter ficado anestesiado para as demais e isso se reflete no filme. Ou seja, ele pouco aparece regendo ou compondo; em uma cena, a regência dura não mais que três segundos para que ele beije a esposa, cena basicamente inútil, como várias outras. O uso das composições é ruim, dado que normalmente sem finalidade alguma, seja para contrastar o conteúdo da cena, seja para elevar sentimentos transmitidos nela. São exceções: a cena musical de dança, que não é ruim, mas quebra a unidade estilística; a que envolve “Mass”; a que ele rege na igreja; e a que os filhos dele dançam. Não à toa, são cenas mais longas, reafirmando que o ritmo frenético é problemático.
Bradley Cooper não consegue amarrar com harmonia os fragmentos que compõem “Maestro”. Trata-se de uma colcha de retalhos sem competência enquanto biografia, aquém do esperado quanto à arte do biografado e com um romance de inexplicáveis silêncios, sugerindo uma falta de amor verdadeiro.
* Filme assistido durante a cobertura da 47ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.