“MÃES PARALELAS” – Gerações de mulheres espanholas
No cinema de Pedro Almodóvar, as personagens femininas se destacam com um tratamento refinado que confere nuances e complexidade. Em títulos como “Volver“, “Fale com ela“, “Tudo sobre minha mãe” e “Mulheres à beira de um ataque de nervos“, as mulheres desempenham papeis cômicos e/ou dramáticos que enriquecem os conflitos pelos quais passam sempre tornando-as tridimensionais e cativantes. Por mais que o cineasta sempre represente mulheres espanholas, a história do país nunca esteve tão arraigada na trama, na ideia artística e nas personagens como em MÃES PARALELAS. No seu mais novo projeto, dramas particulares e nacionais se encontram para retratar gerações de famílias fragmentadas.
Janis e Ana são as duas mulheres que movem a narrativa. A primeira se aproxima dos 40 anos e engravidou no momento em que desejava ser mãe, já a segunda é uma jovem menor de idade que não planejou a gravidez e está preocupada com o futuro. No hospital, as duas mulheres grávidas dividem o mesmo quarto e, ao se conhecerem, começam a construir um vínculo. Após os nascimentos de Cecilia e de Anita, as duas mães reforçam os laços que mudam suas vidas, especialmente quando Janis descobre algo delicado a respeito dos bebês.
O arco narrativo de Janis não inclui somente as reviravoltas da maternidade, já que a abertura mostra a fotógrafa se esforçando para encontrar os restos mortais de seu bisavô. Para isso, precisa da ajuda do antropólogo forense Arturo, que pode reunir os recursos e o apoio institucional para fazer as escavações em um terreno onde os ossos do bisavô e de outros homens que lutaram na guerra podem estar. Quando este conflito é citado, faz-se alusão à Guerra Civil espanhola, um acontecimento que deixou marcas muito profundas no país, sobretudo a violência dos falangistas (fascistas espanhóis) e o desaparecimento dos corpos dos combatentes que enfrentaram a extrema direita. A partir do relacionamento de Janis e Arturo, a protagonista tem duas jornadas complementares: quer dar um encerramento digno a um parte de sua vida através dos ritos de despedida de um familiar morto e precisa pensar no futuro ao engravidar do antropólogo, um homem casado com quem se relacionou sem compromisso. Nas duas dimensões, o universo familiar possui conflitos relacionados à sua composição.
Como uma família se constitui? Quais arranjos familiares contemporâneos se diferenciam dos modelos tradicionais de pai, mãe e filhos? Tais questões perpassam os paralelismos criados por Almodóvar para aproximar Janis e Ana, sobretudo a partir da montagem que transita entre as duas personagens e entre as semelhanças de suas vidas. Em dois momentos, o cineasta encadeia as cenas em que elas estão em trabalho de parto e convivem diariamente com outras pessoas que fazem parte de seus cotidianos. O uso da montagem paralela permite conhecer as duas realidades tanto no que têm em comum quanto nas suas diferenças: ambas são mães solteiras com dilemas familiares, um grande carinho por suas filhas e o desafio de reorganizar suas rotinas; Janis já gostaria de ser mãe e, apesar de ter uma rede de apoio maior (a melhor amiga e duas funcionárias), passa por dificuldades para voltar ao trabalho por não confiar na babá; e Ana se vê assustada com uma gravidez inesperada e sem auxílio devido à imaturidade do início da vida adulta, à necessidade de encontrar sustento para si e para Anita e à distância dos próprios pais (não vê o pai e a mãe se dedica plenamente à carreira de atriz).
As famílias de Janis e Ana possuem outro elemento em comum, bastante expressivo do tipo de enredo trabalhado por Almodóvar. As duas personagens estão praticamente cercadas somente por mulheres (a exceção fica por conta da presença de Arturo na vida de Janis, apesar de ele desaparecer da narrativa por tempo considerável), o que demonstra a existência de novas composições familiares e relações sociais múltiplas no mundo contemporâneo. Ao invés de o roteiro tratar as ausências da figura masculina ou de uma família convencional como desafios ou barreiras, essa característica evidencia que as mulheres bastam em si mesmas sendo unidas e empáticas. Quem trabalha nas duas casas são mulheres, a relação familiar de Ana é mais forte com a mãe (o pai surge apenas em ligações telefônicas), a principal amizade de Janis é com Elena e a criação de Janis foi feita por sua mãe, até a morte precoce, e continuada pela avó e pela bisavó. Nesse sentido, é interessante observar que, em determinada sequências, Janis veste uma blusa que diz “Todos deveriam ser feministas”.
Acima de tudo, a relação entre mulheres que mais se sobressai é aquela desenvolvida entre Janis e Ana. Elas se conhecem no hospital quando a mulher mais velha ajuda a jovem a suportar as dores da gravidez e a controlar a respiração. Após o parto, o auxílio prossegue quando Janis oferece a troca de números de telefone para permanecerem em contato. Inicialmente, parecem continuar próximas enquanto vivenciam seus próprios arcos narrativos, mas uma reviravolta surpreendente reorienta a questão da maternidade para ambas. Uma descoberta incomum, um segredo aflitivo, uma tragédia precoce e a indecisão quanto a melhor solução possível fazem com que a trama se transforme e novos sofrimentos afetem Janis e Ana. As alterações desencadeadas no segundo ato impactam as duas mulheres, a princípio separadamente, em seguida juntas quando voltam a interagir após um tempo distanciadas, além de colocar um difícil dilema envolvendo os bebês. Se a guerra já havia fragmentado famílias no passado, o insólito também fragmentou outras famílias no presente.
Pensar que seria possível definir uma solução difícil para os conflitos de Janis é rapidamente descartado. O que se deve priorizar? Os desejos maternais de Janis, os sentimentos de Ana ou de Janis, algum senso de ética para a situação ou até uma saída equilibrada para todos os lados? Na chave estilística do melodrama, Almodóvar acentua as dúvidas e as dores do impasse em torno das duas mães. A paleta de cores tradicionalmente formada por cores quentes (amarelo, laranja e vermelho) é utilizada para intensificar os conflitos dramáticos e a trilha sonora assinada por Alberto Iglesias, colaborador de longa data, aparece pontualmente em cenas de confronto entre Janis e Arturo e Janis e Ana. Além disso, é essencial o talento dramático de Penélope Cruz para criar a protagonista, alguém que carrega muitas dúvidas e sofrimentos dentro de si sem poder revelar o que sente ou contar com a ajuda de outra pessoa – no turbilhão de emoções da personagem, é complexo lidar com a lacuna deixada pelo desaparecimento do corpo de um familiar e com os problemas decorrentes da maternidade.
Depois de uma abertura que enfoca primordialmente o esforço pela descoberta dos restos mortais de um combatente da Guerra Civil espanhola, poderia ser incongruente para olhares apressados acompanhar uma narrativa a respeito dos dramas íntimos de duas duas mulheres grávidas. Porém, uma discussão entre Janis e Ana combina com uma sensibilidade ímpar as duas escalas do conflito dramático: enquanto a jovem prefere pensar no futuro porque voltar ao passado seria reabrir feridas, a mulher mais velha afirma que encontrar a ossada do seu bisavô significaria preservar/respeitar a memória de sua família e ainda demonstrar que tipo de país se pretendia ter, ou seja, uma nação que não compactuasse com a violência e o autoritarismo do fascismo com aquele da década de 1930. Por isso, o terceiro ato prioriza o trabalho de escavação arqueológica e a indicação de como essa busca contempla diversas famílias desestabilizadas pelo conflito, algo que fica evidente nos dois últimos planos do filme em torno de uma geração de mulheres espanholas. Se em “Dor e glória“, Almodóvar foi em direção ao seu passado para pensar em sua trajetória, em “Mães paralelas“, o diretor foi em direção ao passado da Espanha para fazer uma obra política que reflete sobre o presente.
Um resultado de todos os filmes que já viu.