“MÃES DE VERDADE” – Nem sempre uma mãe, sempre mãe única [44 MICSP]
É possível que a única união incontroversa entre as pessoas seja o respeito à maternidade. Não à toa, xingamentos envolvendo mães são considerados os mais desrespeitosos dentre todos possíveis. MÃES DE VERDADE acerta na pluralidade de seu título porque nem sempre uma pessoa tem uma mãe, já que não existe um conceito de mãe.
Desejando ter um filho, Kiyokazu e Satoko resolvem adotar um bebê através de um programa conhecido como Baby Baton. Seis anos depois, aparece uma jovem chamada Hikari, alegando ser a mãe biológica do bebê que adotaram, a quem deram o nome de Asato. Hikari exige que o casal devolva seu filho ou lhe entregue uma quantia em dinheiro, ameaçando-os se não fizeram nada.
Naomi Kawase não poderia ser um nome melhor para dirigir o longa – cujo roteiro também é de sua responsabilidade, também com Izumi Takahashi. Em mais uma obra deveras contemplativa, como costumam ser as dirigidas por Kawase, o movimento vertical dos primeiros minutos, mostrando uma ilha ao longe, é um indicativo do ritmo deliberadamente lento empregado na produção. Com bastante sensibilidade, a cineasta se preocupa em demonstrar o afeto através da câmera, seja por uma cena inteira (quando Satoko escova os dentes de Asato), seja por closes em cenas (as mãos dadas entre mãe e filho na escada rolante). Um abraço em um elevador não é um simples abraço, mas uma demonstração expressa do imenso afeto materno.
Evitando recair em generalização, “Mães de verdade” não coloca todas as mães em uma vala comum. Enquanto uma grávida afirma expressamente que não sente amor pelo seu bebê e que não quer segurá-lo após o parto, Hikari aprende a ser mãe, reconduzindo seu amor pelo namorado para o filho vindouro. É bastante simbólico que o Baby Baton seja em Hiroshima, traduzindo a ideia de (re)nascimento: nas duas vezes em que Hikari vai lá, sua vida ganha inesperadas ressignificações. Na primeira vez, ela deixa de ser uma adolescente frágil e submissa para retornar para casa uma mulher (o que ela revela ao afirmar que os ursinhos no quarto são infantis). Na segunda vez, ela entra consciente da necessidade de aprendizado de vida e sai disposta a refazer seu futuro. Aju Makita não vai mal no papel, porém Hiromi Nagasaku, que vive Satoko, é muito mais convincente.
Em meio a cenários lindíssimos filmados geralmente na contraluz (diversos contreplongées em árvores) e embalados por sons naturais diegéticos (folhas das árvores), o viés contemplativo do filme – uma metáfora um pouco piegas para a “mãe natureza” – atenua o documental. O uso de câmera na mão é uma das várias ferramentas técnicas em razão das quais a película parece, no mínimo, um found footage. É possível citar também a cena da palestra de Asami (a delicadeza da interpretação de Miyoko Asada indica que foi subaproveitada), os depoimentos dos adotantes, os enfoques etc. Nos enquadramentos, Kawase usa primeiros planos e closes para enfatizar a reação das personagens, como na cena em que o casal vai ao médico. Visualmente, há uso mais intenso de cores claras (principalmente tons pastéis) para transmitir a sensação branda que prevalece no plot, surgindo cores escuras (nos uniformes) quando o arco narrativo de Hikari se torna um convincente drama.
É nessa parte, por sinal, que o roteiro se torna mais engajante. A fuga da cronologia linear é interessante porque exige que o espectador monte o mosaico da trama a partir de elementos acessórios, como um telefone tocando e a saída a pé da família. Quando a narrativa se torna clara, porém, o plot não consegue ser instigante o suficiente em razão da sua evolução lenta. O clímax funciona muito bem e inicia um ato final muito superior aos antecedentes, porém existem micronarrativas dispensáveis (o acidente de Asato na escola é despropositado) e apenas o arco de Hikari estimula a curiosidade sobre o seu desfecho. É muito mais interessante ver a jovem lutar contra inúmeros fatores desfavoráveis à sua felicidade do que a vida de um casal abastado cujo primeiro problema familiar em muito tempo é a ameaça de uma desconhecida. Por outro lado, se o objetivo de “Mães de verdade” é enfatizar os significados da maternidade, ele é atingido. Socioafetividade e vínculos biológicos não são lados opostos de uma luta, mas duas faces de uma mesma moeda. Cada uma à sua maneira, essas duas faces precisaram enfrentar dificuldades que fizeram da moeda uma única. Assim como cada mãe é única – mas não precisa ser sempre apenas uma.
* Filme assistido durante a cobertura da 44ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.