“MÁ EDUCAÇÃO” – Da vida para a arte
Em determinada cena na saída de um cinema, um personagem comenta “é como se todos os filmes falassem de nós”. Essa sensação acompanha MÁ EDUCAÇÃO a cada elemento e reviravolta da narrativa. A citação anterior apenas escancara algo que podemos perceber e sentir no tema e na linguagem dessa produção: a vida oferece para a arte histórias devastadoras e fascinantes sem precisar da imaginação. Uma ideia que o diretor trabalha através de uma incomum noção sobre adaptações cinematográficas.
Na proposta temática, o filme já demonstra nascer das experiências dos personagens sendo encenadas na ficção. O cineasta Enrique recebe do velho amigo Ignacio, que não o via há mais de dez anos, um roteiro baseado na adolescência dos dois em um internato católico. Alternando entre duas linhas temporais, o texto faz o protagonista refletir sobre os efeito da repressão sexual ao longo da sua trajetória.
Quando conhecemos Enrique, sabemos que ele atravessa uma crise criativa e busca inspirações no noticiário do jornal, ou seja, em fatos reais. Em um dia de trabalho, reencontra Ignacio e descobre que o colega se tornou ator, se apresenta com o nome artístico Angel e quer adaptar para o cinema uma trama baseada na adolescência deles e em uma livre imaginação da fase adulta (portanto, utiliza passagens da vida para produzir uma obra audiovisual e tenta convencer o amigo a dirigir). Fele Martínez e Gael García Bernal, respectivamente, elevam os conflitos de seus personagens a outra dimensão: este não é apenas um artista empenhado em sua arte porque esconde egoísmo, individualismo e um desejo por triunfar a qualquer custo; aquele revive uma crise pessoal que envolve os traumas do passado e a impossibilidade de concretizar uma paixão por conta da violência e da ambição.
A partir do momento em que o roteiro é entregue para Enrique e ele começa a o ler, a narrativa mergulha no passado dos homens. Logo, acompanhamos o período em que estudaram em um colégio católico e, apesar de vivenciarem ocasiões felizes (como jogar futebol), também sofreram com experiências trágicas: os abusos cometidos pelo padre Manolo, que se aproveitava de sua autoridade e da incapacidade da vítima de fugir daquela violência; e a paixão entre Ignacio e Enrique iniciada ingenuamente como uma descoberta sexual em uma sala de cinema, que é reprimida pelo discurso preconceituoso de que seria pecado (curiosamente enunciado no filme a que os garotos assistiam anteriormente). Essas sequências podem traduzir a ideia da vida inspirando a arte na própria linguagem, encadeando passado e presente com raccords visuais (folhas de uma página se transformam em imagens e os rostos juvenis se convertem nas expressões maduras) e contrastando o calor emocional do presente (cores vibrantes como laranja e amarelo) e a austeridade fria das igrejas e do internato (cores lavadas como o cinza e o marrom).
Reviver essas memórias faz com que o protagonista se questione cada vez mais sobre a identidade daquele que se apresentava como Ignacio. As dúvidas se assemelham à reação que temos quando reencontramos alguém que há muito não o víamos ou até à impressão de que as histórias que consumimos não retratam personagens reais como são na vida. O questionamento abre espaço para que os dois homens se aproximem e vivenciem momentos bastante evocativos, como na cena em que nadam em uma piscina e uma tensão sexual se desenvolve com vários subtextos complementares (uma discussão sobre casting se desdobra em atração física e em dúvidas sobre Ignacio ser quem diz ser). Tal passagem contém um sensualidade também notada nas diversas cenas de nudez e sexo e nas referências a múltiplas identidades de gênero, como a homossexualidade e a travestilidade. O erotismo pode ser tanto uma marca de Pedro Almodóvar quanto uma escolha do diretor de filmar a trama (adaptá-la segundo seu estilo) e afirmar que, como na vida, essas identidades devem aparecer naturalmente no cinema.
À medida que a produção se desdobra em conflitos ressurgidos do passado e apresenta novas dinâmicas criadas durante o processo de filmagem, a narrativa traz novas camadas. A montagem de José Salcedo organiza linhas temporais diversas, passando pelo presente narrativo aberto pelo reencontro entre Enrique e Ignacio; pelo passado mais distante evocado pela leitura do roteiro de Ignacio ou pela encenação em um filme de Enrique; e pelo passado mais recente sob a ótica do padre Manolo. Essa estrutura não se limita a um simples artifício presunçoso, mas revela como trajetórias de vida e narrativas cinematográficas podem reformular seus significados – são vozes diversas, complementares ou conflituosas de um mesmo fato ou de uma mesma história contada.
É igualmente curioso pensar que Almodóvar não apenas ilustra o roteiro escrito por ele mesmo. No papel de diretor, estabelece sua visão estética particular que, além das cores fortes (definidas pelo designer Antxón Gomez), da sensualidade e da montagem complexa, não renega o melodrama. O desenvolvimento temático abraça o estilo com uma trama marcada por traumas, morte, ameaça e chantagem, além de se associar a recursos evocativos desse subgênero: o jogo alternado de closes enquanto um momento dramático acontece; a composição dos quadros destacando os closes ou o perfil do personagem enquadrado; e o reforço das emoções através de cenas transcorridas em cinemas que exibem um drama religioso e um noir.
Então, retomar a frase citada no primeiro parágrafo se torna expressivo quando refletimos sobre o que o diretor faz na interação entre vida e ficção. Quando as vidas daqueles personagens ganham uma adaptação na diegese da obra presenciamos três camadas se entrelaçando entre o que é real e ficcional: as vidas de indivíduos, o filme dentro do filme e o trabalho de Almodóvar. Assim, “Má educação” se encerra referenciando os desfechos de produções baseadas em fatos com uma abordagem singular. Uma abordagem sobre a dialética em torno da vida sendo adaptada pelas artes.
Um resultado de todos os filmes que já viu.