“M3GAN” – Tecnologia kitsch
M3GAN está rodeado por nomes relevantes do cinema de terror contemporâneo. James Wan, conhecido por filmes como “Jogos mortais“, “Invocação do mal” e “Maligno“, é um dos produtores. A Blumhouse Productions, empresa responsável por títulos como “A morte te dá parabéns“, “A entidade” e “Corra!“, é a produtora. Pouco antes do lançamento, fotografias, vídeos de bastidores e trailers chamaram atenção para a boneca robótica e perversa que dá nome ao filme. Os profissionais envolvidos e os materiais de divulgação preparam o terreno para uma produção que se centra no uso problemático da tecnologia sob uma roupagem orgulhosamente brega.
Na trama, Cady é uma menina órfã que perdeu os pais em um acidente de carro. Após a tragédia, ela fica sob os cuidados da tia Gemma, que trabalha em uma empresa high-tech de brinquedos. A mulher está sendo pressionada para aprimorar uma coleção de bichos de estimação tecnológicos e ainda tem dificuldades para deixar a sobrinha à vontade em sua nova casa e em uma realidade diferente. Tentando resolver os dois problemas, Gemma desenvolve M3gan, um robô humanoide designada a ajudar as crianças e fazer companhia a elas. O modelo é emparelhado com Cady e convivem muito bem até a boneca se tornar mais independente e uma máquina de matar para proteger a menina.
Antes de fazer o terror irromper de fato em tela, o diretor Gerard Johnstone constrói uma abordagem dramática ligada à condição das personagens femininas centrais. Cady sofre com a reviravolta em sua vida e Gemma hesita em assumir um papel materno, ou seja, ambas estão inseridas em um conflito sobre a criação de filhos. Embora o drama seja tratado sutilmente e não roube a cena do terror, é pertinente considerar que muitos espectadores possam desejar a entrada de M3gan mais rapidamente na narrativa. Estes primeiros minutos também servem para o filme abordar o caráter invasivo dos aparelhos eletrônicos em nosso cotidiano, sobretudo na relação entre pais e filhos. Enquanto a mãe de Cady controla o tempo de exposição da menina a qualquer tela, o pai parece mais disposto a deixá-la livre para não cumprir as obrigações paternas. Já Gemma prioriza o trabalho de desenvolvedora de brinquedos eletrônicos em detrimento da sobrinha, não se importando com o período em frente a uma tela ou não conseguindo ler uma história para ela dormir por falta de livros em casa (é irônica a tentativa de fazer download de um livro).
Quando M3gan enfim aparece, a discussão sobre o quanto a tecnologia se infiltra em nossas vidas até nos tornarmos dependentes dela continua. Porém, não é interesse de Gerard Johnstone desenvolver essas reflexões a ponto de criar leituras sociológicas, escancarar as consequências ou buscar soluções. Ainda assim, é possível identificar questões sensíveis do mundo contemporâneo ou profundas da própria humanidade: a transferência de tarefas lúdicas e educacionais dos pais para algum aparelho eletrônico, a perda de interações sociais com outras pessoas em uma realidade cada vez mais solitária, o apego emocional a apetrechos tecnológicos, a utilização de instrumentos ou aplicativos sem tanta necessidade concreta, especulações sobre a conquista de consciência das máquinas, a compreensão sobre os sentidos de vida e morte, entre outras. Ao invés de tratar assuntos complexos com grande seriedade sob o risco de perder de vista o propósito original de diversão, a narrativa enumera tais pontos sem a pretensão de impor explicações fechadas. O objetivo é criar uma sensação de filme de terror B com muito estilo e apelos sensoriais variados.
O elemento que imediatamente fundamenta a percepção de que o filme assume com orgulho sua natureza kitsch é a boneca M3gan. A arte kitsch é aquela que foge de padrões sociais do que seria “alta cultura” e “beleza artística”, aceita os exageros e o bom humor, mistura abordagens, abraça convenções do “feio” e absorve as limitações dos filmes de terror B com reverências. A personagem é dublada por Jenna Davis e interpretada em toda a fisicalidade por Amie Donald. Inicialmente, as atrizes fazem os movimentos e o tom de voz serem robotizados e artificiais; em seguida, a movimentação corporal e a o tom de voz se tornam mais naturalistas como se fosse realmente uma jovem garota, ainda que a composição visual mantenha uma expressão robótica. As interações de M3gan com Cady e Gemma reforçam a impressão de que algo está propositalmente fora do lugar, pois a doçura inicial de uma companhia se transforma em sarcasmo desafiador de uma máquina em constante avanço com a atualização de novos dados e em brutalidade assustadora de uma protetora radical.
Por algum tempo, os filmes B de qualquer gênero (em especial os de terror) eram considerados inferiores por conta do baixo orçamento e das escolhas formais fora de padrões naturalistas e de noções estéticas “agradáveis” ao olhar. Mais recentemente, esse tipo de produção passou a receber um tratamento diferente que reconhece o valor, homenageia e até incorpora tais parâmetros sob uma perspectiva consciente e espirituosa. Sendo assim, a encenação geral, a construção de momentos específicos e a textura das imagens são moldadas por efeitos de CGI que não se preocupam em ocultar os efeitos de pós-produção. Então, “M3gan” pode remeter facilmente a “Brinquedo assassino”, mas também a unidade estilística exagerada de “Maligno“, pois o cineasta explora o absurdo em torno da ideia de um brinquedo tecnológico se tornar um assassino. Exemplos que criam essa atmosfera não faltam: a abertura com um comercial de TV, os jump scares protagonizados pela boneca, o uso de canções divertidas ou mórbidas em ocasiões contrastantes, os comentários autoconscientes dos personagens sobre o nonsense da história, as “piadas” sobre o caráter ameaçador de M3gan, a sequência de dança em um corredor…
Entretanto, um dos aspectos mais chamativos da estrutura narrativa não acompanha por completo o princípio de contraste entre uma trama sobre tecnologia e uma abordagem visual conscientemente brega. As sequências violentas até podem ter um senso de ridículo cômico na proposta de execução – o assassinato de um animal, a dilaceração de uma parte do corpo de outra vítima, a morte provocada por um objeto inusitado e a revelação da natureza assassina de M3gan no laboratório da empresa -, mas o resultado da encenação fica a desejar. A necessidade de enquadrar a produção em uma classificação etária baixa para permitir um público maior faz com que o efeito da violência não seja registrado ou seja muito suavizado. É o que acontece quando objetos perfurantes atingem o corpo de uma personagem e não se vê sangue ou quando os assassinatos são praticados fora de campo e do olhar da câmera (até há uma breve exceção quando alguns corpos são rapidamente exibidos frontalmente pela câmera). Ao abrandar essas cenas, a chance de usar a violência como elemento cartunesco que potencializaria a forma de filme B é desperdiçada.
Mesmo que segure o tempo para a aparição da boneca robô e reduza a representação da violência, “M3gan” aproveita outras possibilidades para divertir dentro do contraste entre tecnologia e exageros cafonas. O clímax no terceiro ato é o exemplo mais bem acabado de como Gerard Johnstone não tenta levar a sério uma história sobre um brinquedo assassino de baixa estatura com algumas feições humanas. O desenrolar do confronto entre M3gan, Cady e Gemma passa por relações dramáticas acerca da maternidade e alcança a ficção científica com a inclusão de um personagem robótico mencionado anteriormente. E o próprio terror transita por diferentes subgêneros nesse momento, dialogando com o sobrenatural ao contextualizar a sequência final na casa de Gemma e com o slasher e o body horror no enfrentamento entre as três personagens. Longe de ser uma combinação forçada de estilos sem saber o que quer ser, o filme cria um universo extravagante que pode se ampliar organicamente tanto pelo desfecho nos moldes de que nem tudo teria acabado e pela notícia de confirmação de uma continuação.
Um resultado de todos os filmes que já viu.