“M, O VAMPIRO DE DUSSELDORF” (1931) – O mal-estar de uma era
* Filme assistido na plataforma da FILMICCA (clique aqui para acessar a página).
Desespero, angústia, horror, pessimismo, melancolia e desesperança. Estas sensações atravessam a experiência de assistir a M, O VAMPIRO DE DUSSELDORF, uma das obras seminais do Expressionismo Alemão da década de 1930. De início, a trama e a encenação podem propor um envolvimento mais direcionado para o mistério de uma investigação policial, mas os rumos tomados por uma narrativa que se inicia com uma série de assassinatos extrapolam o suspense do “quem matou?” e atinge reflexões sociológicas em torna da violência humana. Nesse movimento, o filme retira maiores possibilidades de alívio e de resolução satisfatória, seja quando trabalha a imaginação do espectador, seja quando explicita os desdobramentos das atrocidades de uma sociedade perturbada.
O subtítulo em alemão – uma cidade está à procura de um assassino – evidencia claramente sobre o que se trata a produção. Um assassino em série de crianças está fazendo diversas vítimas em uma cidade alemã, o que comove a população local e pressiona a investigação dos policiais. A sequência de crimes e a falta de pistas geram um caos no local, visto no desespero dos moradores, na pressão política das autoridades e no vigilantismo social dos criminosos. Então, enquanto o trabalho da polícia é prejudicado, uma caçada ao serial killer se instala por interesses variados, exceto pela aplicação da justiça dentro de parâmetros morais.
Fritz Lang começa a manipular as reações do público dentro de códigos visuais típicos do suspense policial, explorando a tensão que antecede o assassinato. A morte de Elsie Beckman é preparada com uma decupagem meticulosa e sutil que se torna inquietante não pela exposição direta da imagem, mas pela sugestão da natureza brutal da imagem: a ingenuidade das crianças é comprometida pela violência do ambiente (a canção infantil em uma brincadeira traz a ameaça violenta de um homem de preto que usa sua navalha afiada, e Elsie joga sua bola na direção de um poste que traz informações sobre os crimes); uma sombra anuncia a aproximação do assassino e uma câmera posicionada em suas costas indica a manipulação da menina com um brinquedo; e a morte da garota é representada pelos gritos aflitos de sua mãe pela janela, por planos de cenários vazios e silenciosos, pelo movimento de uma bola perdida na relva e pelo voo desolado de uma balão para um poste de luz. Logo, a imaginação do público é conduzida sem escapatória para um lugar de perdição e sofrimento, não permitindo vislumbrar possibilidades mais esperançosas.
Sem dúvida, Fritz Lang é um dos nomes paradigmáticos do Expressionismo Alemão. Em sua carreira, o cineasta se notabilizou por obras como “Dr. Mabuse“, “O testamento do Dr. Mabuse” e “Metrópolis“, tendo em comum a criação de universos visualmente próximos a um pesadelo com formas distorcidas e fotografia opressiva. Especialmente quando o assunto é “Metrópolis“, a composição estética se coloca de modo mais explícito e estilizado na distinção entre a superfície e o mundo inferior. No entanto, o filme de 1931 também explora traços visuais, estéticos e sonoros, ainda que possa parecer discreto, para fazer avançar sua dramaturgia. Na perseguição ao assassino, um assobio recorrente é percebido como forma de identificá-lo e a marcação da letra M em suas costas dificulta sua fuga. E a caçada propriamente ocorre no interior de um prédio se aproveitando do contraste de luz e sombras existente em aposentos estreitos e sinuosos. Tais elementos ajudam na transição entre o poder sugestivo das imagens e a exploração direta da carga dramática da encenação.
Ao longo da história do cinema, alguns movimentos cinematográficos influenciaram de forma ainda mais intensa a arte produzida a partir dali. E o Expressionismo Alemão é um desses casos, pois contribuiu para o surgimento do subgênero noir e para o estilo de artistas contemporâneos, como Tim Burton. Além disso, retratou de maneira evocativa o contexto da Alemanha após a Primeira Guerra Mundial, marcado por desilusão, pessimismo, crise econômica e desestruturação social. Ao invés de registrar esse período com técnicas realistas, o movimento priorizou uma representação subjetiva do mundo com temas angustiantes, design de produção irrealista e atuações exageradas. Os aspectos disparadores da estética expressionista foram vários: o choque com o uso destrutivo dos avanços tecnológicos para fins bélicos, a devastação da Alemanha após a Grande Guerra e as pesadas punições sofridas pelo Tratado de Versalhes. Em termos temáticos, “M, O Vampiro de Dusseldorf” se filia a essa época ao abordar a criminalidade e as disputas de poder na possível chave histórica da representação da República de Weimar.
Este recorte temático transparece na ligeira alteração de estilo da narrativa, que deixava a sugestão do que a câmera não mostra para explicitar os conflitos dramáticos decorrentes de uma investigação de múltiplos homicídios. Em determinado momento, a população é movida pelo medo e pela paranoia de ver as crianças desprotegidas pela rua, levando-a tentar linchar um homem que julgam ser o assassino. Em outras sequências, a incompetência policial é realçada pela discrepância entre a narração em off do delegado justificando a falta de suspeitos sem criticar seus subordinados e a sucessão de imagens de policiais deixando de cumprir suas obrigações (ou quando cumprem, ficam confundidos por questões inúteis de depoimentos de “testemunhas”). Mais adiante, a deturpação moral daquela sociedade é demonstrada quando a investigação policial inclui atuar violentamente em bares locais contra pessoas inocentes e quando outros criminosos se reúnem para procurar o serial killer em nome de seus próprios interesses distorcidos – é curioso notar como a montagem paralela aproxima a reunião dos bandidos da reunião dos policiais e dos políticos como se fossem semelhantes.
Por sinal, a montagem ajuda a simbolizar como a sociedade alemã estava abalada em uma conjuntura mais ampla, tendo a cidade do filme como microcosmo daquela condição. A crise socioeconômica de um país tumultuado por convulsões históricas pode ser acessada pelo papel desempenhado pelos mendigos na trama. Eles são mobilizados pelos bandidos comuns para participar da investigação paralela em busca do assassino de crianças por passarem desapercebidos (afinal, são tratados socialmente como parte integrante do cenário e não como indivíduos com grandes dificuldades resultantes de uma sociedade desigual). Em contrapartida, recebem alguma “atenção” dos criminosos e não dos agentes públicos, estes os mais indicados para atuar na solução do problema da mendicância (recebem o “trabalho” de vigiar ruas, esquinas e vielas à procura de qualquer homem suspeito próximo às crianças, inclusive sendo pagos para a tarefa). Na sequência em que os mendigos são contratados, outra nuance da deturpação moral do lugar aparece, pois a decupagem confere ao momento uma atmosfera de negócio lícito sendo feito.
Mesmo que a investigação paralela seja questionável, ela prossegue revelando cada vez mais suas contradições. Apesar de a polícia ser a instituição definida para cumprir esse papel, ela não corresponde plenamente às suas funções. Em um cenário como este, torna-se improvável supor que a descoberta do assassino conduziria a uma resolução dentro dos parâmetros da lei. A máxima do “fazer justiça com as próprias mãos” encontra o vigilantismo e o justiçamento social, deturpando os sentidos de prisão e julgamento. Eis que então a força de “M, O Vampiro de Dusseldorf” se afirma novamente nas atuações exageradamente sofrida de Peter Lorre como o assassino e hipócrita de Gustaf Gründgens como o líder dos criminosos e, sobretudo, nas últimas discussões sociológicas propostas. Seria a violência algo inato do ser humano ou uma produção do meio? Como lidar racional e não emocionalmente com o julgamento de crimes? Indivíduos tão violentos são construções sociais ou monstruosidades excepcionais? Este final projeta o que seria o nazismo anos depois? O filme não precisa responder a essas perguntas para ser um clássico. Pelo contrário, sua potência está em lançar as perguntas.
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