“LUPIN” [2ª PARTE] – Espionagem, comédia, vingança e homenagens
AVISO: o texto que segue possui spoilers da primeira parte da série. Clique aqui para ler a nossa crítica sem spoilers da primeira parte.
A divisão de LUPIN em partes, ao invés de temporadas, é uma mera jogada de marketing da Netflix sobre sua obra original, pois assim ela fica mais tempo como assunto para as pessoas (em especial nas mídias sociais). Entretanto, o cliffhanger do quinto episódio, em que Assane é desmascarado por Guédira e Raoul desaparece das vistas de seus pais, serve como um divisor de águas no roteiro entre os dez episódios. Assim, a segunda parte (episódios seis a dez) supera a primeira.
Guédira descobriu que Assane é Lupin, mas essa não é a preocupação do protagonista. O passeio com Claire e Raoul é arruinado quando Léonard sequestra o garoto, o que foi visto apenas por Guédira. Antes de se vingar de Hubert Pellegrini, Assane precisa recuperar seu filho.
A grande vantagem da segunda parte da série, quando comparada à primeira, é que todas as premissas já estão estabelecidas, o que permite uma progressão narrativa sem explicações de backstory. Já se sabe o que move Assane e quais seus obstáculos, além das questões menores como as da sua vida afetiva. A série de George Kay mantém suas bases, quais sejam, as referências variadas ao livro de Maurice Leblanc, um estilo de espionagem com toques de comédia e uma história de vingança. A partir do sexto episódio, contudo, ao roteiro é permitido criar novos arcos narrativos menos preocupados com o passado.
Não que o que houve com Babakar tenha sido irrelevante. Pelo contrário, foi fundamental para dar a Assane a sua motivação. A partir disso, Omar Sy injeta seu carisma no herói, cuja inspiração no clássico francês lhe dá um charme que justifica o encanto de Guédira (Soufiane Guerrab), Claire (Ludivine Sagnier), Juliette (Clotilde Hesme), Ben (Antoine Gouy) e Raoul (Etan Simon) por ele. Para Raoul, o pai é, de fato, um herói (defende-o inclusive perante Pellegrini); Claire não olha para ele como quem olha para um amor, mas o afeto é perceptível (se necessário, está disposta a salvá-lo); Ben e Juliette dividem com Assane um passado saudoso e uma amizade (no primeiro caso) e uma paixão (no segundo) acalentadoras. Quanto a Guédira, dividir com Assane o encanto pelo ladrão de casaca é encontrar alguém com quem partilha um idioma (o dos anagramas, por exemplo).
São inúmeras as referências à obra de Leblanc, de mensagens que apenas leitores do livro decifram (a que Assane manda como resposta à recebida pelo celular de Raul) a referências visuais (o número do quarto do hotel), de personagens (Guérira como Ganimard) a fugas. Quase tão numerosas quanto as referências são as fugas do protagonista, trazendo à série bastante ação e dinamismo. A trilha musical se aproveita da ação para aproximar “Lupin” da franquia “007” (a Leitmotiv de Bond é uma inspiração evidente para Mathieu Lamboley, que assina a trilha) e imprimir um ritmo acelerado. Marcam presença canções de outras épocas (“Reach out I’ll be there”, de The Four Tops), mas também atuais (“Cuz I love you”, da Lizzo), além de surpresas como “Gentleman cambrioleur”, de Jacques Dutronc (um clássico francês cujo título é uma expressão que designa o assaltante que tem uma vida dupla, a comum e a criminosa, agindo sempre com elegância, é o “ladrão cavalheiro”), e instrumentais que acompanham o compasso das cenas (em especiais no último episódio da segunda parte).
A montagem, como na primeira parte, alterna as linhas temporais (simulando o som de um cronômetro quando textualmente anuncia a mudança) para formar uma espécie de espelho entre o pretérito e o presente diegético. Geralmente, o resultado é limitado a rimas narrativas (a manipulação de voz, por exemplo), porém o sexto episódio é mais ousado ao fazer o presente se apossar de uma música do passado, que de intradiegética se torna extradiegética. Não é original (longe disso), mas sai do engessamento técnico de muitas outras séries, que não sabem fazer esse tipo de mescla. O uso de lentes grande-angulares e pouca profundidade de campo se repete em relação à primeira parte – leia-se, desnecessariamente -, mas a concisão narrativa dá à segunda parte um novo respiro.
Contando com três arcos narrativos (um centrado em Raoul, outro em Juliette e o último em Léonard), os cinco episódios conseguem repetir o que era qualidade (o subtexto de racismo, por exemplo) para expandir a trajetória de Assane. A expansão ocorre inclusive no subtexto: mesmo encurralado, Pellegrini (Hervé Pierre) mostra que seu poder e sua influência o tornam um inimigo à altura do herói. O fio condutor, como mencionado, é uma história de vingança, mas a narrativa é moldada por uma estrutura não linear que a torna muito mais atraente. Trata-se de uma série que não pode ser levada completamente a sério (a suspensão de descrença é inevitável, a começar pelos disfarces) e sem grande profundidade, mas que homenageia alguns clássicos (não apenas o livro de Leblanc, mas a canção de Dutronc, os filmes de espionagem etc.) em formato de quebra-cabeça que, se nem sempre surpreende o espectador, quase sempre o diverte.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.