“LOKI” [1X01] – Gloriosa ilusão
Vindo da mitologia nórdica, Loki é o deus da trapaça e da mentira, capaz de usar a magia para assumir a forma que quiser. No universo cinematográfico da Marvel, tais características estiveram presentes ao fazer a personagem mitológica fazer parte de um drama shakespeariano (“Thor“), de uma fantasia de ação (“Vingadores“) e de uma comédia assumida (“Thor: Ragnarok“). Agora no mundo das séries, a mesma condição parece ditar as escolhas de LOKI, nova produção disponível na Disney+. De maneira orgânica, protagonista e narrativa se alternam entre gêneros diferentes para iniciar uma trama envolvente em muitos aspectos.
O primeiro episódio tem início a partir da última aparição do deus nórdico em “Vingadores: Ultimato“. Quando Tony Stark e Steve Rogers voltaram no tempo para impedir a destruição causada por Thanos queriam reaver o Tesseract, mas a missão não é bem sucedida e a gema do espaço é roubada por Loki. O asgardiano tinha como objetivo reinar sobre Midgard, até ser capturado pela Autoridade de Variância Temporal, uma organização que impede o surgimento de linhas do tempo que ameacem a existência do universo. Para sua sorte, o agente Mobius quer sua ajuda para deter um perigo ainda maior.
Nos últimos filmes, Loki já havia se tornado uma personagem na qual a comédia era um elemento forte. Logo, a série parte daí para extrair humor do contraste entre um deus poderoso (algo que é constantemente falado por ele mesmo em uma postura egocêntrica e grandiosa de exaltação) e uma ambientação burocrática típica de uma empresa cheia de processos, regulamentos, funcionários e departamentos. O roubo do Tesseract é visto como uma ameaça à Linha do Tempo Sagrada, criada e protegida pelos Guardiões do Tempo, por isso a Autoridade de Variância Temporal deve julgar as ações do protagonista e definir uma punição. A narrativa apresenta tudo isso através de situações que reforçam um tipo de burocracia nada condizente com a figura mitológica (deixar seus pertences com um funcionário específico, assinar documentos que atestem tudo que já foi dito por ela, entrar em uma fila com senha para ser atendido, trocar sua roupa por uma vestimenta padrão e participar de um julgamento). Nesse sentido, o design de produção dos espaços da organização estabelece visualmente a diferença entre mitologia e rotina ordinária.
Além da comédia, a diretora Kate Herron introduz a trama dentro de convenções da ficção científica, especialmente do subgênero de viagem no tempo. O roteiro do primeiro capítulo, escrito por Michael Waldron e Tom Kauffman, apresenta aspectos clássicos, como consequências desastrosas ao se reescrever linhas do tempo, formas diferentes de se vivenciar a passagem do tempo e a discussão sobre livre arbítrio versus determinação dos acontecimentos por uma força superior – esse ponto, por sinal, cria conflitos interessantes em cada momento que Loki declara que apenas ele move seu próprio destino. Enquanto o texto da série trabalha elementos da ficção científica misturando-os à fantasia dos super-heróis, a cineasta também cria gags visuais que traduzem a questão da alteração do fluxo temporal: por exemplo, os agentes da organização possuem um dispositivo que, disparado contra uma pessoa, fazem a velocidade do tempo desacelerar ou o alvo ser jogado em uma bolha temporal fora de uma sequência linear.
Poderia se imaginar que o episódio se basearia no encontro entre comédia e ficção científica, porém as transformações vão além e parecem seguir as potencialidades do protagonista. Por mais que o humor se destaque, há também um componente dramático evocado pela interação entre Loki e Mobius quando o agente começa a fazer perguntas ao deus sobre como o próprio se enxerga, as razões para querer tanto governar reinos e se ele não desfrutava de algum prazer ao cometer atos violentos – nesses momentos, a história discute brevemente a natureza da vilania e os conflitos internos de um ser que se pretende grandioso, mas acumula muitas derrotas que o afastam de seu objetivo. A capacidade de transitar de um gênero a outro depende igualmente da dinâmica entre Tom Hiddleston e Owen Wilson, dois atores que atuam a partir dos estímulos que cada um proporciona ao outro, seja para efeitos cômicos, seja para efeitos dramáticos. Por conta disso, as sequências em que estão juntos são as melhores e oferecem possibilidades ainda mais ricas para o decorrer da produção.
“Glorioso propósito” é uma abertura bastante promissora para “Loki“, tanto em termos de possíveis novos rumos para o MCU (abordar o multiverso tão comentado dos quadrinhos) quanto de uma história voltada para a jornada do seu protagonista (fazer um balanço da ambiguidade e dos embates internos do deus da trapaça). Assim, a nova série da Disney+ tem potencial maior do que acabou sendo “Falcão e o Soldado Invernal” e semelhante ao que foi “WandaVision“, ao demonstrar que o tom camaleônico de Loki pode fazer muito bem a uma produção sobre super-heróis que não deve se fechar a um gênero único. Isso fica ainda mais evidente quando o capítulo se encerra como uma trama policial, através da elegante e sombria encenação de um assassino que executa agentes da Autoridade da Variância Temporal. A impressão deixada pelo primeiro episódio não parece ser uma mentira como outras tantas pronunciadas pelo deus nórdico.
Um resultado de todos os filmes que já viu.