“LET’S DANCE” – Catarse final que justifica o todo
Em 1978, Donna Summer estrelou o filme “Até que enfim é sexta-feira” (no original, “Thank God it’s friday”, que, em tradução livre, seria “Graças a Deus é sexta-feira”). A artista, conhecida como Rainha do Disco, fez história ao consagrar seu single “Last dance” com o Oscar de Melhor Canção Original. A música, uma maravilhosa ode à dança, faz um inteligente jogo de palavras entre “let’s dance” (vamos dançar) e “last dance” (última dança). Foi um hino de um gênero musical marginalizado parte em razão de seu público (minorias, como negros e homossexuais – lembrando que ainda não se falava em “comunidade”, muito menos em siglas representativas), parte por mesclar gêneros que também eram mal vistos (funk, soul e salsa, por exemplo). O original Netflix LET’S DANCE pode não se tornar um paradigma como a canção parônima, mas tem qualidades em comum com ela.
O protagonista do longa é Joseph, um hábil dançarino de hip-hop recém chegado a Paris com seu melhor amigo Karim e sua namorada Emma. Juntos, eles querem participar de uma competição internacional, sendo aceitos para entrar no grupo do exigente e temperamental coreógrafo Youri. Sem demora, Yuri demonstra mais interesse em se aproximar de Emma do que na dança em si, o que arrisca mudar os rumos do trio.
A trama, escrita pelo diretor Ladislas Chollat juntamente com Joris Morio, tem a ousadia pouco usual de mudar consideravelmente o percurso inicialmente traçado. O que era para ser um enredo de competição esportiva recheado de clichês se torna uma história sobre laços afetivos e paixão pela dança. Pode parecer pouco, mas o twist demonstra coragem em reduzir a relevância da competição em si para usar seus dois pilares, a afetividade e a dança. A constante citação ao clássico “Rocky” não é à toa, pois este também não é meramente um filme de boxe.
É verdade que Rayane Bensetti não parece ser o Gene Kelly de sua geração, tendo ótimo desempenho na dança, mas deixando a desejar na dramaticidade. É significativo que, em termos interpretativos, os coadjuvantes – com destaque a Alexia Giordano (Chloé), Guillaume de Tonquédec (Rémi) e Mehdi Kerkouche (Karim) – se saiam melhor que o Joseph de Bensetti. Contudo, o intérprete do protagonista faz o suficiente para demonstrar a tridimensionalidade de Joseph, que duvida de suas capacidades (relutando muito em assumir a posição de líder criativo), se nega a encarar um passado traumático (seu backstory explica o comportamento em relação a Rémi) e demonstra fragilidade emocional no relacionamento com Emma (Fiorella Campanella).
Acaba sendo positivo que os coadjuvantes sirvam de suporte para robustecer os conflitos de Joseph. Chloé tem tudo para ser o terceiro elemento de um triângulo amoroso, porém o trato dado ao roteiro é muito mais romântico (no sentido técnico), beirando o idílico. Joseph não precisa de Chloé para que os dois sejam um só. Rémi faz parte do curioso backstory do protagonista em detalhes que são revelados aos poucos, desconhecidos até mesmo de seu melhor amigo. Karim pode parecer um alívio cômico raso – o amigo gay sem arco dramático próprio -, contudo ele se revela fundamental para dar à narrativa um rumo que faça sentido (principalmente na cena em que os amigos brigam). Como decorrência lógica, surgem subtramas complexas, como a descoberta de novos tons de sexualidade (algo sutil, mas claro o suficiente) e o espaço oportuno (e o inoportuno) para o perdão e o recomeço (envolvendo mais de uma personagem).
Se todos giram em torno de Joseph, ele se debruça sobre a dança como faz um voraz predador após capturar a sua presa. As coreografias são, em parte, prejudicadas por recursos estilísticos dispensáveis, notadamente o excesso de cortes e de uso de slow motion, além da iluminação exagerada, todavia tudo isso é esquecido em razão de um epílogo sensacional. Não causa surpresa a ideia do protagonista em aliar o hip-hop ao balé (isso é previsível desde a cena em que ele reencontra Rémi), mas encanta a maneira inovadora como ele faz isso. A sequência final é dotada de uma magia sem igual – quiçá uma das melhores do cinema francês contemporâneo! -, tanto por sua execução intensa quanto pela escolha musical.
Tratando-se, aliás, de um filme sobre dança, Romain Trouillet demonstra a sabedoria de fugir do óbvio na trilha musical, escolhendo o popular (“Titanium”, de David Guetta e Sia) sem abrir mão do alternativo (“Tap dance”, de Octave Minds, Chance the Rapper e The Social Experiment), passando por vozes particulares (Regina Spektor, “Hero”) e por um inigualável clássico barroco (“As quatro estações” – “Verão”, “Presto” -, de Vivaldi, em magnífica versão recomposta por Max Richter). Na parte específica do hip-hop, as aulas de Joseph deixam claro que a regra é não ter regra, desde que haja paixão.
O que “Let’s dance” tem em comum com “Last dance” é traduzir um fascínio flamejante, homenageando, através da sétima arte (cinema), uma das vertentes (dança) da segunda arte (artes cênicas). Como plus, a subversão das estruturas tradicionais dos filmes semelhantes, com ápice em um catártico encerramento. Isolado, ele já justifica a obra como um todo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.