“LEGÍTIMO REI” – Um filme com preocupação histórica
Quando se trata de temas históricos, o cinema não tem a obrigação de retratar a versão mais aceita da historiografia. Afinal, o autor pode se apropriar de eventos do passado para expressar sua visão de mundo sobre o curso da História. Porém, o comentário para LEGÍTIMO REI, produção original Netflix, precisa ser outro: o esforço de reconstituição de época proporcionou um filme sobre os conflitos entre Inglaterra e Escócia, no século XIV, preocupado com a verossimilhança histórica.
Na Escócia do século XIV, a disputa pelo trono entre duas famílias aristocráticas é interrompida pela dominação política e militar da Inglaterra. Após a repressão às revoltas lideradas por William Wallace, Robert de Bruce reivindica novamente o trono escocês e, junto de seus aliados, luta pela independência da região. Reconhecendo o contexto histórico do qual o filme faz parte, é possível colocá-lo como uma sequência não oficial de “Coração valente“, ao menos por mostrar os acontecimentos reais posteriores à rebelião de William Wallace contra o monarca inglês Edward I.
A apresentação do contexto histórico não é feita abusando do didatismo informativo nem se limitando aos desmandos da Coroa inglesa sobre os escoceses. Aspectos da sociedade medieval são inseridos sutilmente na narrativa para dar maior veracidade à história contada: o modo de vida modesto dos camponeses (inclusive com alguns costumes dos celtas); as relações de lealdade e auxílio militar entre nobres; a influência da Igreja na legitimação dos reis e na autorização de conflitos (exemplificada pela proibição de guerras aos domingos). Além disso, o domínio político, militar e econômico da Inglaterra convive com as rivalidades internas pelo trono na Escócia e com os desafios de formar um exército para enfrentar o invasor.
A reconstrução do período também é feita através da composição dos cenários e da caracterização dos figurinos. Há um forte contraste entre os castelos grandiosos e aristocráticos e as vilas simples, humildes e lamacentas dos camponeses; a sujeira nos campos de batalha é realçada pela mistura de sangue e lama durante as sequências de guerra. O mesmo contraste socioeconômico se faz presente nas vestimentas suntuosas da nobreza (sejam as tradicionais, sejam as de batalha, todas elas se tornam maltrapilhas ao longo dos embates) e nas roupas discretas e de qualidade inferior dos camponeses.
Outro ponto associado à sensação de realismo histórico do filme é o estilo da direção de David Mackenzie. Um exemplo significativo aparece já na abertura, filmada em um plano-sequência desafiador: os impactos do controle inglês sobre a Escócia são demonstrados ao longo de quase dez minutos sem cortes, alternando entre ambientes fechados e abertos, um duelo de espadas e o funcionamento de uma catapulta. Toda essa combinação se baseia na eficiência dos efeitos visuais práticos e na grandiosidade das locações para garantir uma imersão no século XIV. A beleza visual não seria possível sem o trabalho de fotografia de Barry Ackroyd, que imprime um tom depressivo representativo da situação da Escócia: a iluminação constantemente melancólica e as cores frias drenadas por um céu nublado reforçam a atmosfera pessimista.
No decorrer da narrativa, o cineasta opta por planos e enquadramentos tradicionais, diferentemente do plano-sequência inicial. Ainda assim, sua câmera se mantém dinâmica e compensa uma ligeira queda no ritmo do filme durante os momentos políticos de preparação para a guerra e de construção de alianças militares. A energia da direção de David Mackenzie é percebida nas sequências de ação que, por mais que não sejam inventivas, constroem a tensão e a adrenalina de forma intensa e se passam em situações diversas (uma emboscada à noite, um ataque no litoral e as batalhas campais). É no clímax do terceiro ato que o conflito bélico eleva suas proporções e transmite essa sensação ao público graças aos planos abertos, aéreos e fechados dentro da batalha em si.
O único aspecto falho do trabalho do cineasta é a direção de atores. O cavaleiro escocês James Douglas é interpretado por Aaron Taylor-Johnson com excessos caricaturais (ele se excede na quantidade de gritos e de expressões de fúria); o mesmo overacting está presente na atuação de Billy Howle como o Príncipe de Gales. Já em relação a Robert de Bruce, o resultado é oscilante: Chris Pine confere carisma ao personagem e convence como um rei próximo de seus súditos, porém não entrega o vigor físico necessário para os momentos de maior brutalidade das batalhas.
Apesar dos problemas do elenco principal, “Legítimo rei” se equilibra entre o entretenimento e o filme de temática histórica. Existe a preocupação em tornar os conflitos pela independência da Escócia e seus desdobramentos uma história realista e impactante para os espectadores. Mesmo não precisando (nem sendo possível) ser um registro histórico fidedigno, a obra se esforça por seguir uma perspectiva complexa para a descrição da guerra, pois enfoca a degradação, a brutalidade e as difíceis relações políticas entre ingleses, escoceses e outros povos britânicos. É, dessa forma, que conquista valor artístico e histórico.
Um resultado de todos os filmes que já viu.