“LEGALIDADE” – Solenidade da luta
O ano de 1961 não é tão conhecido no imaginário popular como o período de grande crise na história republicana brasileira que foi. A instabilidade política após a renúncia de Jânio Quadros, o sentimento anticomunista em ebulição direcionado a João Goulart e ameaças de golpe contra a posse do então vice-presidente resultaram no movimento liderado por Brizola a favor da constituição federal. LEGALIDADE aborda esse turbulento contexto histórico sem a preocupação de evitar uma estética artificial que enfraqueça o poder da narrativa.
O estopim do filme é a história recente do país. Após a renúncia do presidente Jânio Quadros com oito meses de governo, o sucessor natural seria o vice João Goulart. Simultaneamente à mobilização de setores conservadores para impedir a posse de Jango, o governador do Rio Grande do Sul organiza a rede da legalidade para garantir o rito político constitucional. Em um cenário político adverso para o equilíbrio nacional, é formado um triângulo amoroso entre os irmãos Luis Carlos e Tonho e a jornalista do Washington Post Cecília.
Apesar das boas intenções em reconstruir um período pouco lembrado e abordado pela cultura cinematográfica, em comparação com os eventos subsequentes de 1964, o filme peca pela solenidade excessiva. O discurso histórico sobre esse passado carrega em pompa e circunstância em diferentes momentos: a inserção de notas do hino nacional deixa a trilha sonora com um tom nacionalista incompatível com os rumos da trama; os diálogos artificiais retiram qualquer naturalidade do que deveriam ser conversas naturais e se comportam como aulas de história apressadas (exemplificados pela conversa em um bar na qual os personagens comentam a imagem de Jango supostamente como um comunista e relembram fatos de sua carreira política); e uma mise en scène altamente melodramática que torna a dinâmica entre os personagens um comício público (representada pelas cenas em que Brizola fala com seus aliados às portas fechadas com seus aliados e discute com a esposa na mesa de refeição como se estivesse em um palanque).
Essas falhas obscurecem os méritos da ambientação histórica e da progressão da narrativa quando são utilizados recursos visuais e dramáticos. Na sequência de abertura, as convulsões políticas de 1961 são apresentadas pelo rádio que transmite o discurso do vice Jango em viagem de negócios para a China comunista, pela silhueta de Jânio escrevendo a carta renúncia e pelo discurso de Brizola no Palácio Piratini sobre sua posição de desenvolvimento nacional autônomo e de melhoria das condições de vida da população. As próprias exposições do governador gaúcho também levantam controvérsias e discussões políticas relacionadas à década de 1960 no Brasil (significados da democracia, projetos de desenvolvimento social e econômico, relação entre Estado e sociedade…), quando valorizam sua oratória particular e seus ideais em público e não na intimidade dos espaços privados. Além disso, o uso de imagens de arquivo mostrando a mobilização de cidadãos nas ruas a favor de Jango e o movimento pela posse do presidente.
A reconstituição histórica faz parecer que o ritmo da produção seria dinâmico, capturando o interesse do espectador com a sucessão de detalhes e conflitos que se entrelaçam rapidamente. Inicialmente, então, há um dinamismo evocativo da urgência da crise política e das ameaças de golpe e guerra civil que preparam o terreno para um clímax importante para a história do país. Porém, o ritmo se deteriora e perde potência em razão da subtrama envolvendo o triângulo amoroso entre Cecília, Tonho e Luis Carlos: não há drama, romance, função narrativa ou naturalidade na relação estabelecida entre os três personagens. Desse modo, a trama central acerca das lutas políticas brasileiras é constantemente interrompida por arcos dramáticos que começam sem sentido e não chegam a lugar algum.
O tom novelesco e solene do filme prejudica também o desenvolvimento de seu tema: a necessidade contínua de lutar e resistir contra as forças antidemocráticas. Essa questão se traduz no posicionamento de todos os setores legalistas citados pelo roteiro que valorizam a constituição e na união dos cidadãos pela proteção da democracia – o engajamento de políticos, militares e membros de classe média demonstra a disseminação dos princípios democráticos e a cena no vagão de um trem em que os passageiros seguem o exemplo de Luis Carlos de assobiar a mesma música simboliza a comunhão de diferentes indivíduos em prol de um objetivo em comum. Essas direções narrativas são comprometidas pela caracterização problemática dos arcos dos personagens: Luis Carlos é interpretado por Fernando Alves Pinto com um tom de voz robótico e unidimensional; a Cecília é vivida com um empáfia injustiçada por Cléo Pires (além de sexualizada pela câmera de Zeca Brito sem qualquer sentido); e a entrada da mulher e de Tonho nas lutas políticas acontece abruptamente sem maiores explicações (especialmente no caso de Cecília e de seu vínculo secreto com os EUA).
“Legalidade” ainda trabalha o binômio lutar/resistir contra o golpismo no contexto atual do Brasil, utilizando as passagens com Bianca em 2004 para abordar o reencontro dos brasileiros com a memória e com as heranças malditas do passado recente. Podem até ser blocos perdidos na narrativa que nunca exploram todo o seu potencial, porém com algum valor para se referir ao estado contemporâneo da política nacional. Não fossem a solenidade, a artificialidade e o pedantismo da dramaturgia. o filme poderia marcar mais seu nome na nossa cinematografia.
Um resultado de todos os filmes que já viu.