“LAZZARO FELICE” – Alegoria da realidade como ela é
A Bíblia conta com duas personagens com o nome Lázaro. O primeiro é conhecido como “Lázaro, o leproso”, mencionado em uma parábola contada por Jesus no Evangelho de São Lucas, era o protetor dos leprosos e dos mendigos; o segundo é o “Lázaro de Betânia”, constante no Evangelho segundo João, que foi ressuscitado por Jesus, que era seu amigo. LAZZARO FELICE importa as passagens bíblicas e, tomando como referência a obra de Pasolini, cria um belo conto fantástico que convida o público à reflexão.
O protagonista Lazzaro é um jovem paupérrimo e não muito sagaz cuja extrema bondade enseja que todas as pessoas se aproveitem dele, da família aos patrões. Sua vida passa por uma reviravolta depois que conhece Tancredi, filho da sua patroa, que o tira da rotina de trabalho incessante. Dizer mais do que isso poderia significar spoilers, que serão evitados – muito embora o simples nome já permita que sejam elaboradas teorias sobre o encaminhamento da trama.
O filme da roteirista e diretora Alice Rohrwacher tem cento e trinta minutos facilmente divisíveis em duas partes de mesma duração: na primeira, Lazzaro está em seu mundo comum que é vagarosamente afetado por Tancredi; na segunda, o longa adota um realismo fantástico cujo encaminhamento é deveras inusitado e um pouco imprevisível. Como fio condutor temático está a concepção de que as pessoas se beneficiam da inocência alheia, tendo como matérias periféricas a criminalidade através da fraude, o êxodo rural, os efeitos nocivos do capitalismo e o descaso da Igreja Católica. São assuntos ásperos retratados com um suave moralismo – por exemplo, o cigarro é associado a algo ruim, de modo que apenas personagens de má índole fumam. A ideia da cineasta é de uma reprodução social da realidade, tal qual fazia Pier Paolo Pasolini.
Nesse sentido, Pasolini é referência não apenas do ponto de vista substancial mas também no aspecto formal: Rohrwacher não faz nenhum plano-sequência, ao revés, através da montagem, atribui sentido à sua obra, no que Pasolini chamaria de “cinema de poesia” (no qual “sente-se a câmera, sente-se a montagem, e muito”). Não sendo natural a língua da poesia (o naturalismo é muito mais presente na língua da prosa), as imagens são preenchidas por metáforas. No caso de “Lazzaro felice”, mais de uma vez cai sobre o protagonista uma iluminação dourada, simbolizando a sua aura divina, enquanto a calça marrom simboliza humildade e pobreza (como no manto de São Lázaro). A escolha da ária “Casta diva” como música-tema (instrumental) se revela acertada, pois acentua o viés religioso.
Ainda do ponto de vista técnico, a fotografia é granulada com tons amarelos, aparência de antiguidade enfatizada pela razão de aspecto reduzida e com bordas arredondadas – características dos filmes da década de 1960. O design de produção da película é eloquente: na primeira parte, os cenários são bucólicos e serenos, na segunda, o frenesi da cidade é percebido através dos planos abertos que mostram a própria cidade; embora não sejam especificadas as datas em que os eventos ocorrem, a primeira parte se dá nos anos 1990, o que se depreende dos celulares e do rádio de Tancredi, ao contrário da segunda parte, que é bem mais atual, como se percebe pelos carros. Os sons são sempre intradiegéticos, prevalecendo os ruídos, o que torna ainda mais relevante a função da música que começa tocando na Igreja (isto é, ela chama ainda mais a atenção).
Adriano Tardiolo interpreta Lazzaro de forma bem coerente com a proposta: mesmo parecendo inexpressivo, o ator precisou dar à personagem extrema candura, o que significa que a aparente inércia, na verdade, é uma aparência angelical para combinar com o papel do bondoso protagonista. Em uma reação em cadeia, a marquesa explora seus trabalhadores, que, por sua vez, exploram Lazzaro, cuja ingenuidade pueril impede qualquer rebeldia. Faz sentido que ele tenha facilidade em fazer amizade com Tancredi (Luca Chikovani, em boa participação), pois ambos estão insatisfeitos com suas famílias (ainda que por motivos diversos), de modo que o esperto marquês enxerga no inocente camponês um reduto escapista para sua vida aparentemente infeliz. Esteticamente, entretanto, os dois são muito diferentes: Lazzaro usa roupas simples e aparentando sujeira, o cabelo preto está sempre desarrumado, sua pele, suada, e seu corpo é forte; já Tancredi é loiro com cabelo arrumado, usa roupas mais chamativas (inclusive calça skinny com rasgos nos joelhos), além de ser magérrimo e sugerir cansaço emocional muito mais do que físico. Tancredi não trata Lazzaro tão bem quanto este merece, porém, considerando que o protagonista não consegue sequer uma cama para se deitar quando fica doente, um simples presente (que acaba se tornando uma Arma de Chekhov) se torna significativa manifestação de afeto.
Com um desfecho retumbante, “Lazzaro felice” censura a natureza humana de querer tirar proveito de todas as situações, inclusive em prejuízo da bondade de terceiros, ao mesmo tempo em que, usando um tom fabulesco, escancara as consequências ruins do sistema capitalista, no qual apenas uma entidade realmente se dá bem. Mesmo não sendo um filme tenso ou chocante, é claro na sua mensagem segundo a qual a nobreza material (leia-se, o dinheiro) tem prevalecido face à nobreza de caráter. Tecnicamente impecável e com um texto mordaz, a produção constitui uma alegoria desesperançosa em relação à humanidade. Seu objetivo não é que o espectador sinta pena de Lazzaro, mas que tenha consciência da realidade como ela é.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.