“KLONDIKE: A GUERRA NA UCRÂNIA” – Os espaços de uma guerra
Com a invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022, muitas discussões tomaram conta da imprensa, dos círculos políticos e até de ambientes comuns do cotidiano ao redor do mundo. Reportagens jornalísticas, vídeos e podcasts foram produzidos com o intuito de explicar as causas dos conflitos, trazendo à tona temas como Revolução Russa, Guerra Fria, OTAN e nova ordem mundial. Nesse panorama, o lançamento de KLONDIKE: A GUERRA NA UCRÂNIA aproveita um timing perfeito sem desmerecer o valor de uma visão artística própria para contar a história de um casal ucraniano cercado pelas ameaças de uma guerra.
O ano é 2014 e o local é uma pequena vila rural em Donbas, região fronteiriça entre Ucrânia e Rússia, onde ocorrem conflitos entre forças separatistas apoiadoras dos russos e forças nacionalistas ucranianas. Enquanto boa parte dos moradores da área se alia aos russos, o casal Irka e Tolik tenta permanecer ali à espera do nascimento de sua filha. A tentativa de seguir vivendo na mesma casa fica ainda mais difícil quando um avião da Malásia Airlines é derrubado por engano por mísseis. A partir daí, eles precisarão lidar com a aproximação dos separatistas de sua moradia.
Diferentemente dos produtos contemporâneos que buscam as origens históricas das hostilidades entre os dois países, a diretora direciona o olhar da câmera para as relações humanas dos protagonistas. Maryna Er Gorbach constrói primeiramente o espaço íntimo do casal desde o princípio afetado pela violência do mundo exterior. Na sequência inicial, os projetos do marido e da esposa são bloqueados pela explosão de uma bomba que derrubou uma das paredes da casa. Após o fato, Irka e Tolik vivenciam uma série de conflitos dramáticos próprios do casamento, mas potencializados pela guerra tão próxima deles, como a dúvida sobre o parto iminente, a saúde da mãe e do bebê e os desafios acerca da busca por alimentos. Este espaço familiar, portanto, não tem autonomia em relação ao mundo exterior como se pode observar na construção dos planos gerais com personagens diminutos em tela – as figuras humanas podem ser tanto oprimidas pelos vastos cenários quanto aprisionados em uma realidade bélica sobre a qual não têm domínio.
As influências externas se tornam cada vez mais evidentes a partir da entrada em cena de forças rivais na guerra. Sem saber muito bem como tudo começou, o espectador vê Tolik tendo que cooperar os separatistas através, principalmente, do vizinho Sannya. Ele precisa emprestar o carro, ceder a carne da vaca de sua propriedade, vestir o uniforme russo entregue por alguns soldados e ajudar na retirada de um cadáver. Maryna Er Gorbach não deixa dúvidas de que o personagem não é um adepto daquele grupo, ao mesmo tempo que Sergiy Shadrin faz Tolik aparecer como um homem que perdeu o controle sobre sua vida e cumpre as ordens por medo de retaliações. Além disso, a chegada de Yarik, irmão de Irka, traz mais um elemento externo para desestabilizar o casal. No trabalho de atuação de Oleg Scherbina, Yarik se comporta como o irmão preocupado com a gravidez da irmã, decidido a convencê-la a sair da casa e hostil ao cunhado por considerá-lo um traidor da nação.
É importante perceber que a construção do espaço cênico pode atender a múltiplos propósitos narrativos e estéticos. Além de definir o ambiente doméstico dividido pelos protagonistas e afetado pelo conflito militar, a cenografia também demonstra a invasão da privacidade do lar por um mundo exterior violento e não somente por conta da aparição de novos personagens. A moradia em ruínas, após o desabamento de parte considerável de uma parede, é colocada em contato direto e forçado com o espaço externo, restando poucos limites separadores entre o privado e o público. Há cenas que abordam explicitamente o fim dessa separação, como quando o sofá é levado para fora para ser higienizado e um momento íntimo do casal é recusado por Irka. Em outras sequências, o próprio espectador sente a vulnerabilidade da casa mesmo que o fato não seja abordado diretamente, mas apenas por poder observar a natureza do lado de fora e temer a aproximação de alguém.
Tolik e Irka não estão limitados exclusivamente ao cenário de sua residência, pois ambos também transitam pelas estradas do vilarejo e por locações mais diversas do local. Ao terem o carro de volta, marido e esposa ajudam outras pessoas a procurarem entes queridos perdidos por culpa da guerra civil e se deparam com uma realidade ainda mais perigosa. É possível encontrar um avião derrubado sendo carregado por grupos militares e ser parado em uma blitz em busca de eventuais fugitivos ou traidores. Em qualquer uma das situações, importa muito a delimitação do espaço atingido pelos confrontos bélicos e o direcionamento do olhar que molda determinado espaço. Assim, a perspectiva da câmera guia a perspectiva do espectador por uma decupagem econômica de poucos planos, poucos cortes, enquadramentos fixos e travellings lentos, capaz de inserir repentinamente uma ameaça no mais banal dos momentos e mostrar somente o mais expressivo da cena em questão. É através dessas composições que um movimento lateral e sutil da câmera anuncia uma explosão e o posicionamento específico da câmera surpreende com uma tragédia abrupta.
Quem mais se beneficia com as escolhas da decupagem é Oksana Cherkashyna. A atriz aproveita os planos gerais do início da narrativa para dar a Irka uma postura resoluta que combina com a força que exerce sobre Tolik, ao passo que se transforma nas sequências em que os planos se fecham sobre ela e seu sofrimento transparece claramente. É bem verdade que as mudanças de pontos de vista, emoções e sentidos da ação dramática ocorrem muito mais por conta da movimentação dos atores pelos cenários, já que o plano se mantém estático. Por exemplo, a sequência que se inicia com a tentativa de Tolik de erguer outra parede e de Yarik de limpar o lugar se transforma à medida que os personagens se movem, passado pela briga entre os homens, a insatisfação da mulher e a incerteza quanto ao desfecho da briga. Esteticamente, é um momento tão fluido que capta a atenção do público e explora com habilidade significativa as transições de temas e temporalidades.
A princípio, a escolha por uma encenação mais sóbria em termos de planos, movimentação de câmera e montagem poderia afastar o público e criar uma sensação de distanciamento emocional. Em algumas passagens, o risco até existe, porém o desenvolvimento do filme dificulta sensações do tipo. Em especial, é o que acontece na chocante sequência final que mantém o plano fixo, coloca os personagens para se movimentarem, alterna o ponto de vista da câmera e sustenta o ponto de vista do espectador em momentos de profunda dor de Yarik, Tolik e Irka. Evocando o que o neorrealismo italiano já produziu em termos de aproveitamento de cenários devastados e desoladores em contextos de guerra, como “Roma, cidade aberta” e “Alemanha, ano zero“, “Klodike: Guerra na Ucrânia” propõe diferentes olhares que constroem espaços por onde a guerra influencia, afeta, invade e destrói. Pode ser o espaço tradicional de um local onde a guerra ocorre. Pode ser o espaço familiar devastado pela violência. E pode ser o espaço fílmico onde a visão artística da diretora se estrutura para contar uma história potente.
Um resultado de todos os filmes que já viu.