“KING’S MAN: A ORIGEM” – Revisionismo histórico
Revisionismo histórico é uma operação que prevê uma livre interpretação dos fatos sem, necessariamente, negá-los, mas utilizando-os para justificar as disputas políticas do presente com uma narrativa alternativa. Esta definição do historiador Mateus Henrique de Faria Pereira não pressupõe uma atitude problemática por essência, pois os conhecimentos históricos estão sob constante revisão com novas fontes e perspectivas. As artes também podem passar por processo semelhante com os remakes, as continuações, os reboots e as prequels sem ser algo negativo por excelência. No entanto, KING’S MAN: A ORIGEM é um exemplo de revisionismo histórico questionável em mais de um nível.
O novo filme é uma prequel, ou seja, uma história de origem sobre o universo da agência de inteligência independente Kingsman, baseada na série de quadrinhos homônima criada por Dave Gibbons e Mark Millar. Após uma tragédia se abater sobre sua família em 1902, o Duque de Oxford jurou proteger o filho Conrad de qualquer perigo. A promessa é colocada em xeque quando um grupo secreto de vilões interfere às escondidas nas relações internacionais para provocar um conflito de grandes proporções entre as principais nações do mundo. Então, a deflagração da Primeira Guerra Mundial em 1914 faz com que o duque e seu filho, com a ajuda dos funcionários Polly e Shola, precisem atuar para minimizar os efeitos da guerra e dos vilões.
Em 2014 e em 2017, foram lançados, respectivamente, “Kingsman: O serviço secreto” e “Kingsman: O círculo dourado“. Com os dois títulos, o diretor Matthew Vaughn criou sátiras de comédia e ação para os filmes de espiões, parodiando as tramas mirabolantes de vilões caricaturais e sequências de ação fantasiosas com aparelhos tecnológicos fantásticos. Poderia se imaginar que a continuação/prequel assumiria o mesmo estilo para contar como a Kingsman começou, porém a incursão pelo passado da agência é contada com outro tipo de narrativa. Dessa vez, trata-se de um enredo de espionagem inserido em um filme de guerra sem o humor e a ação espirituosos dos antecessores. Levar-se mais a sério e propor mudanças de abordagem não seriam problemas a priori se o novo olhar se sustentasse por si mesmo, o que não acontece. Ao invés de experimentar possibilidades diferentes e enriquecedoras, o cineasta e roteirista revisa a história ficcional e a História europeia do início do século XX com efeitos muito controversos.
No eixo condutor da trama, está a relação entre pai e filho no contexto da Grande Guerra de 1914 a 1918. O conflito dramático entre eles começa quando o duque tenta impedir o jovem Conrad a ir para o front de batalha lutar pela Inglaterra, sendo que este se mostra irredutível na decisão de representar sua pátria em um momento delicado por receio de se sentir em dívida com seu país e seus compatriotas. A modificação feita para o novo filme deixa um gosto de decepção, considerando-se que a troca no arco principal fez surgir um núcleo genérico que pouco cativa o espectador. Isso porque Harris Dickinson não sustenta um personagem tão importante como Conrad em termos dramáticos nem para as exigências das sequências de ação, o que torna seu sentimento nacionalista inicial muito ingênuo para os desdobramento de seu arco e para esse núcleo. E se Ralph Fiennes lida com eficiência com a relação dramática entre o duque e o filho e com as coreografias da ação, o personagem se enfraquece com a aparência de cavalheirismo pacifista que, na verdade, carrega uma postura aristocrática, esnobe e elitista especialmente ao interagir com o funcionário Shola.
Além de revisar o enredo ficcional, Matthew Vaughn também interpreta livremente as causas, as rivalidades e os sentidos da Primeira Guerra Mundial. O pano de fundo histórico para a criação da Kingsman é simplificado como se fosse apenas produto das conspirações de um grupo secreto liderado por um arquivilão dono de um plano maquiavélico. A dinâmica e a construção estética em torno do núcleo reforçam o tom conspiratório de um maniqueísmo que interfere na geopolítica internacional: o rosto do vilão sempre nas sombras, suas atitudes ameaçadoras para os capangas e os animais do local, a infiltração dos capangas nos governos da Inglaterra, dos EUA, da Rússia e da Alemanha, o esconderijo isolado e a fotografia sombria nas reuniões da organização. A abordagem da História poderia se combinar à comédia satírica se o humor servisse para ridicularizar figuras de poder, porém a escolha formal se leva a sério demais e justifica os eventos históricos daquele período a partir da manipulação de uma organização secreta.
Como exemplo das manipulações, está a rivalidade entre os governantes inglês, alemão e russo que desencadeia o conflito mundial. De acordo com a trama, a guerra não teria sido gerada por disputas políticas e econômicas relacionadas à dominação imperialista da África e da Ásia e pelas tensões nacionalistas da época, mas simplesmente porque os líderes dos três países foram manipulados para reviver desentendimentos que tinham na infância. A mesma distorção que esvazia explicações históricas estruturais e conjunturais e dá mais importância ao anedótico e ao voluntarismo da ação individual se faz presente na descrição de eventos específicos do conflito: o assassinato do arquiduque austríaco Francisco Ferdinando é reescrito sem motivo concreto, as discussões em torno da saída da Rússia da guerra envolvem somente uma questão familiar, a descoberta do telegrama Zimmermann não passa de uma série de estratégias das duas organizações secretas e os dilemas para a entrada ou não dos EUA no conflito se resumem aos escândalos pessoais do presidente, entre outros episódios construídos de modo similar.
Ao mesmo tempo que o revisionismo da História europeia do século XX produz leituras perigosas, o revisionismo da diegese fica insuficiente. Por mais que a construção de época seja funcional, sobretudo o trabalho de figurino e cabelo/maquiagem e as trincheiras no front de batalha, o predomínio da seriedade e da solenidade na narrativa a torna fria e distante. Há poucos momentos que lembram o humor que fez tão bem aos filmes anteriores, como a sequência de luta com Rasputin filmada como um balé e as sequências de ação no terceiro ato com a participação de bodes, e a fluidez das cenas de ação que brincam com a angulação da câmera, o tempo fílmico e a correção de efeitos digitais na pós-produção, como a explosão de um navio por um submarino. No restante da obra, predominam uma austeridade na construção visual e gags/easter eggs capazes apenas de piscar para o espectador interessado em encontrar referências (a menção às bebidas Stateman e à frase “A conduta define o homem” antes de uma luta).
Falar em revisionismo histórico não precisa ser, necessariamente, uma crítica. Entretanto, o que “King’s man: A origem” faz, ultrapassa as potencialidades de interpretações alternativas para algum objeto histórico ou artístico. Como produto audiovisual, falta envolvimento emocional para uma trama de espionagem e guerra, que não traz nada muito especial em termos cinematográficos, tenta criticar o belicismo da Primeira Guerra Mundial, mas cria sequências de ação com o efeito oposto (o sacrifício feito por Conrad na trincheira) e faz uma ligação frágil com o universo Kingsman já estabelecido. E como representação histórica do passado, sua leitura é problemática ética e politicamente para a atualidade ao propor uma versão da História baseada no conspiracionismo de grupos secretos, na diversão do “politicamente incorreto” e na tese do individualismo máximo em detrimento da política vista como algo burocrático e incompetente.
Um resultado de todos os filmes que já viu.