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“KASA BRANCA” – Delicadeza de relações

KASA BRANCA é um belo exemplo de como a simplicidade pode ser expressiva, competente e profunda. Não há um enredo complexo de acontecimentos ou usos virtuosos da técnica cinematográfica. Nem seria necessário. O filme se interessa pelas relações afetuosas dos personagens e entre eles com o ambiente e a cultura. A partir dessas escolhas, a narrativa problematiza estereótipos sobre as periferias cariocas, subverte noções conservadoras sobre masculinidade, reafirma os valores da negritude brasileira e comove pela sinceridade de diferentes relacionamentos.

(© Vitrine Filmes / Divulgação)

Na periferia da Chatuba, no Rio de Janeiro, vivem três adolescentes negros. Dé, Adrianim e Martins são amigos de longa data. O primeiro deles é o único familiar que cuida de Almerinda, sua avó que está em estágio avançado do Alzheimer. Como ela entrou em fase terminal, o neto decide, com a ajuda de seus dois melhores amigos, aproveitar da melhor forma os últimos dias de vida de sua avó. Nesse período, outras situações típicas de uma comunidade popular carioca se desenrolam na trajetória dos jovens.

Poderia ser tentador para o diretor Luciano Vidigal concentrar toda a obra em torno do protagonista Dé e de suas interações com a avó doente, deixando de lado os demais personagens e suas histórias. Entretanto, a relação da narrativa com os coadjuvantes é de ternura e eles merecem seus próprios arcos, conflitos, desejos, dificuldades e vitórias. É o que ocorre, por exemplo, com Martins, que se envolve secretamente com a mulher do farmacêutico; Adrianim, que se esforça para retomar o namoro com Talita após uma traição; e a própria Talita, que cuida sozinha da filha e mantém o sonho de viver de sua música. Dentro daquele universo, outras figuras mais secundárias também são respeitadas e ganham algum espaço para não aparecem meros recursos de roteiro, como Neide, a mãe exigente de Adrianim vivida por Roberta Rodrigues na forma como educa o filho e administra sua academia, mas também capaz de confortá-lo diante de frustrações amorosas.

Ainda assim, o centro nervoso da trama é o relacionamento entre Dé e Almerinda. Não se sabe o que aconteceu para o adolescente ter sido deixado só para cuidar da senhora doente, apenas alguns indícios de ressentimentos pela partida do pai, interpretado por Babu Santana (evidenciados pelas ligações em que não fala, pelo fracassado encontro com ele e, por fim, pela conversa no terceiro ato). Dé cuida da avó com uma dedicação ímpar, dando banho, alimentando, administrando os remédios, levando para o hospital, acalmando-a em momentos de desorientação psíquica, entre outras necessidades. O amor do neto transparece também quando preserva uma rotina agradável para Almerinda, como deixá-la ver o movimento do trem em uma estação, e proporciona certos prazeres inusitados, como levá-la ao parque de diversões para andar na montanha-russa e observar a vista da cidade pelo Pico da Pedra Branca. As situações trazem uma delicadeza que impulsiona a atuação de Big Jaum, que transita entre o empenho das responsabilidades, o carinho dos pequenos gestos e a dor pelo seu estado de saúde.

Em paralelo, as relações de amizade entre os três adolescentes são outra maneira de Luciano Vidigal repensar a sociedade brasileira e a periferia carioca. Os três personagens nutrem grande respeito e afeto mútuos, demonstrando sem receios que cada um está disponível para outro tanto em termos de auxílio pragmático para atividades cotidianas quanto em termos de suporte emocional. Não existe, portanto, qualquer preocupação de serem vistos como homossexuais em função da proximidade que possuem. O desapego a julgamentos externos é tão grande que Martins tem uma sexualidade fluida, o que pode ser percebida na cena em que se relaciona com a mulher do farmacêutico e um jovem gay da comunidade. A amizade pode ter brigas e desentendimentos, porém prevalece o companheirismo e o amor entre eles. A boa convivência aparece, sobretudo, graças ao bom humor de Martins, conferido por Ramon Francisco, e a sensibilidade de Adrianim, conferida por Diego Francisco. Constantemente, os três amigos podem ser observados juntos se divertindo ou ajudando Dé nos cuidados da avó.

O local deve igualmente ser caracterizado de modo complexo por escolhas específicas do filme para se relacionar com a comunidade da Chatuba sem estereótipos apressados. A presença de realizadores e de um elenco vinculado à periferia certamente contribui para criar uma imagem que não seja unidimensional nem vitimizada. Os problemas estão lá, como a corrupção policial, as ameaças da milícia, o sistema precário de saúde pública e as dificuldades financeiras para o pagamento do aluguel e a compra dos remédios, mas não são elementos que encerram negativamente a descrição do lugar. É possível encontrar a riqueza da ancestralidade africana e a pluralidade cultural como símbolos de formação de identidades. O primeiro aspecto se manifesta em algumas canções que remetem às influências dos iorubás na constituição de sujeitos negros no Brasil e na religiosidade dos personagens que aparece na despedida daqueles que partem. Já o segundo aspecto pode também ser notado pela escolha da trilha sonora, que se alterna entre o samba, o funk e a música eletrônica, todos os ritmos representativos da juventude periférica ou da construção da comunidade.

Em “Kasa branca“, Luciano Vidigal compreende a força dos laços afetivos, delicados e companheiros em múltiplos sentidos e com abordagens igualmente sutis. O cineasta utiliza imagens expressivas para comunicar uma visão afetuosa para os personagens, suas situações de vida, seus conflitos inevitáveis da própria existência, suas identidades culturais e de gênero e o local onde vivem, crescem e se relacionam. Podem ser os planos silenciosos e fechados de Dé cuidando de Almerinda; os closes da senhora aparentando (ou até demonstrando) variações de emoções pelo reconhecimento de algo feito pelo neto; o travelling durante a caminhada dos personagens próximos a um muro com ilustrações de figuras negras renomadas; o plano aberto para a vista imponente do Rio de Janeiro do ponto mais alto da cidade; e a sequência sem diálogos após a internação de Almerinda e a última troca de olhares com Dé. São momentos como esse que destacam o poder das relações com uma cultura rica, um ambiente multifacetado e indivíduos amorosos em meio a perdas e recomeços.