“JOHN WICK 3 – PARABELLUM” – É jogo ou é filme? Voyeurismo ou sadismo?
* Clique aqui para ler a nossa crítica do primeiro filme da franquia, “De volta ao jogo”, de 2014.
* Clique aqui para ler a nossa crítica do segundo filme da franquia, “John Wick: um novo dia para matar”, de 2017.
Salvo pelo voyeurismo, JOHN WICK 3 – PARABELLUM tinha tudo para ser um jogo de videogame. O filme reúne um fiapo de trama mal contada, sequências intermináveis de desafios para o protagonista, cenas de ação de tirar o fôlego, lutas com nível crescente de dificuldade (em níveis evidentemente impossíveis de vitória) e nada de substância. Para ser um jogo, faltou apenas a participação ativa do público – seria um jogo excelente. Para ser um filme excelente, faltou apenas um roteiro.
Depois dos acontecimentos de “John Wick: um novo dia para morrer”, no terceiro filme da franquia o protagonista está sendo perseguido por todos, pois a Alta Cúpula promete a recompensa de catorze milhões de dólares para quem matá-lo. O desafio de John é sobreviver, recorrendo a velhos conhecidos.
De acordo com Winston (Ian McShane, mais espirituoso que nunca), a chance de sobrevivência de John é de cinquenta por cento – ou seja, suas habilidades lendárias ainda são dignas de imenso crédito perante quem o conhece. O roteiro, assinado por Derek Kolstad – criador do universo diegético em sua origem, em “De volta ao jogo” (2014) -, Shay Hatten, Chris Collins e Marc Abrams, aproveita para adentrar um pouco mais na curiosa mitologia em que o protagonista está inserido, porém esse avanço é bastante tímido. Na prática, não há muitas novidades em relação ao que aparece em “Um novo dia para morrer”.
Também há exploração do passado de John, novamente com enorme timidez, quase em flashes. Por exemplo, quando ele encontra Sofia (Halle Berry, que só não vai melhor por falta de tempo de tela), os dois mencionam uma interação no passado, mas o espectador fica sem saber os pormenores do que tiveram. Ela é, inclusive, a única personagem nova que enriquece a “narrativa” (se é que se pode usar o termo nesse filme específico), pois Saïd Taghmaoui está risível no papel que interpreta, Asia Kate Dillon é uma juíza em crise existencial (não sabe se é juíza, acusadora ou advogada) e Anjelica Huston é desperdiçada como uma personagem de minúscula relevância. Por outro lado, a dupla Winston-Charon (McShane e Lance Reddick, respectivamente) ganha maior espaço.
Salvo no que se refere ao universo diegético, em que ocorre, como dito, alguma verticalização, o roteiro do longa é um descalabro. Contando com plot twists nada surpreendentes (alguém achou mesmo que ele iria cumprir o novo acordo?) e com diálogos sofríveis (do tipo “Sofia está à sua espera” seguido de, minutos depois, “Sofia não espera nenhum homem”), o texto é um festival de equívocos graves de storytelling, de furos a inconsistências (não enunciados aqui para evitar spoilers, com a ressalva de que exemplos não faltam). O maior desses equívocos é a quase completa ausência de narrativa: John foge dos inimigos incessantemente, empilhando cadáveres ao seu redor como um cachorro que corre atrás da própria cauda, percebendo, todavia, ao final, que não saiu do lugar onde começou. Nem se cogite que o filme anuncia essa trajetória: nos dois primeiros filmes, há progresso narrativo, aqui não acontece absolutamente nada que represente avanço efetivo no arco narrativo de John (ou de outras personagens relevantes).
Começando com uma animação digital estilo 007, a direção de Chad Stahelski parece melhorar a cada novo filme da franquia. A película não demora para colocar seu (anti-)herói para enfrentar um grandalhão no amontoado de ação que ele encara. Nova Iorque parece um campo minado, não sendo muito diferente a situação nos outros locais – por sinal, as locações enriquecem a estética da produção, que encontra terreno fértil para a fotografia na secura estonteante de Casablanca. Mesmo não sendo o enfoque, a fotografia de Dan Laustsen é impecável, fazendo um belo jogo de luzes em determinadas cenas, aliado ou não de falsos sobre-enquadramentos por vidros (recurso que não é original, mas funciona). Quando aparece um fundo digital (que mais uma vez não é original, mas funciona), a composição visual é esplendorosa.
Sem surpresa, o que mais agrada no longa são as cenas de ação – não a sua inserção narrativa (que é pavorosa), mas a sua execução irrepreensível. Do uso criativo e empolgante de animais (algumas vezes exigindo doses cavalares – literalmente – de suspensão da descrença) à variação no uso de armas, da coreografia magnífica das lutas à corporalidade quase palpável (sem olvidar um exagero de sangue, coerente com a proposta), Stahelski faz um trabalho sublime na parte que lhe cabe (ah se tivesse um roteiro!). A título de menção, sua filmagem evita cortes desnecessários, dá um distanciamento do combate para permitir que o espectador visualize bem o que acontece e utiliza ângulos baixos, normalmente contreplongées, para elevar a grandiosidade da luta filmada. No visual, é ação da melhor qualidade.
Pois bem. Se o esmero da produção não é o roteiro, não seria melhor fazer um jogo de videogame? Se a ideia é “tiro, porrada e bomba”, qual a razão de se fazer um filme quando é possível envolver muito mais o espectador e fazer com que ele participe da ação? Aliás, se o objetivo é justificar a ação pela própria ação, retratando uma verdadeira chacina, a experiência cinematográfica de “John Wick 3 – Parabellum” não é voyeurismo, mas sadismo. Para os sádicos movidos a suor, sangue e adrenalina, o incansável cinquentão Keanu Reeves pode continuar na franquia por muitos anos – afinal, já é o terceiro filme em que ele exibe sua inexpressividade. Uma proposta limitada no conteúdo e bem desenvolvida na forma, mas inquestionavelmente honesta.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.