“JERK” – O horror que se imagina, sente e não vê
* Filme assistido na plataforma da FILMICCA (clique aqui para acessar a página).
A segunda metade do século XX testemunhou a ocorrência ou a revelação de atrocidades em larga escala, que deixaram para a história graves violações aos direitos humanos e experiências traumáticas. Se o esquecimento desses eventos (nazismo, guerras civis, ditaduras militares…) é nocivo para as gerações contemporâneas e subsequentes, como narrar o inenarrável e representar o irrepresentável? A pergunta conforma o experimento conceitual de JERK para tratar a brutalidade dos crimes de um serial killer.
O assassino em série em questão é Dean Corll. Ele massacrou cerca de vinte meninos e registrou os crimes em vídeo com a ajuda dos adolescentes David Brooks e Wayne Henley. Na prisão onde cumpre pena perpétua, David conta sua história através de uma encenação que criou utilizando as habilidades de ventríloquo e marionetista. Então, o filme apresenta uma performance corporal que se baseia no romance homônimo escrito por Dennis Cooper.
Como narrar o inenarrável e representar o irrepresentável são questionamentos que acompanham a tentativa de reconstrução imagética de assassinatos brutais de jovens menores de idade. Referenciando o historiador Domink LaCapra, as operações narrativas convencionais conseguem retratar eventos que romperam agressivamente o direito à vida e materializaram a violência mais extrema com empatia e consideração pelas vítimas? E sem banalizar ou espetacularizar atos tão violentos? Nesse sentido, o risco seria produzir um filme snuff com a exibição de mortes reais ou uma obra de ficção na chave do torture porn. Nenhum dos dois caminhos é seguido pela narrativa, pois as escolhas formais se aproximam do que foi feito no documentário “A imagem que falta” sobre o massacre do Kmer Vermelho no Camboja. Assim, é o implícito que se sobressai nos trabalhos da diretora e coreógrafa Gisèle Vienne e do ator Jonathan Capdevielle.
Gisèle Vienne não precisa criar sequências explicitamente brutais para impactar o público, já que a proposta pode gerar horror pelo que é. Os espectadores são rapidamente empurrados para uma forma de encenação claustrofóbica que não permite respiros nem chances de desviar o olhar. A produção possui um aspecto teatral forte por conta do uso majoritário de uma locação (inclusive, um palco de teatro) e da apresentação de um monólogo; de uma construção visual minimalista e inquietante em função da razão de aspecto reduzida com o quadro em um formato quadrangular; e de uma decupagem com plano sequência capaz de prolongar o choque em razão da falta de cortes que poderiam abrandar o tom sombrio. Como exemplo, o momento em que a plateia de estudantes de psicologia lê um texto escrito por David serve para o assassino preparar as marionetes, o que é filmado sem cortes com a câmera contornando suavemente o personagem.
Jonathan Capdevielle também cumpre um papel vital na construção desse terror, afinal não vemos as cenas dos assassinatos, mas sentimos e imaginamos. O poder da sugestão e da imaginação são eficientes ao potencializar situações aterradoras sem dar a elas uma composição literal, fazendo cada espectador projetar para si como se deram os acontecimentos. A performance corporal do ator orienta as evocações assustadoras, sendo complementada pelo design perturbador das marionetes (uma delas tem marcas de sangue). Em seu trabalho, Jonathan Capdevielle evoca tristeza, melancolia, medo e um humor mórbido, graças a vários recursos distintos de criação dramatúrgica: as entonações específicas de voz para cada marionete, o uso dos braços para a simulação de ações violentas ou sensuais, os ruídos vocais para a sugestão das consequências dos crimes e a utilização da saliva como símbolo de violência (sangue) ou de prazer sexual (orgasmo).
Em função das escolhas formais da diretora e da performance do ator, é possível reconstituir e entender parte dos assassinatos cometidos por Dean Corll, David Brooks e Wayne Henley. Em comum a todos os crimes, as vítimas eram adolescentes atraídos por um jogo perigoso de sexo e violência, as psiques dos criminosos apresentaram sérios distúrbios, os próprios assassinos mantinham relacionamentos sexuais em proximidade com a violência praticada e as mortes eram extremamente brutais (com sugestões de canibalismo e necrofilia). Gisèle Vienne revela esses aspectos através de uma encenação sempre criativa que não se subordina às mesmas ferramentas. Quando não cria cenas provocativas a partir das habilidades do ator como ventríloquo, a diretora propõe descrições verbais de momentos tensos e ainda projeta memórias de fatos devastadores enquanto fixa a câmera em close arrebatador no personagem.
“Jerk” parte de uma premissa audaciosa e perigosa em muitos sentidos. Poderia ser motivado pelo interesse do choque apelativo a qualquer custo, por um conceito hermético sem diálogo com o público ou por um exercício egocêntrico de mero deleite pessoal. No entanto, o filme constrói o que se propõe ao ser um terror que gera uma resposta sensorial forte à medida que se precisa imaginar o que é sugerido por lacunas, símbolos e descrições orais. Como Dominik LaCapra adverte e “A imagem que falta” realiza, o problema da representação da violência extrema em imagens pode ser enfrentado com uma reconstrução indireta e subjetiva que expõe os limites da representação. Assim, o filme entende que o horror está no fato de aqueles crimes esgarçarem a noção de narrativa e falarem mais da brutalidade dos assassinos do que da exposição das vítimas.
Um resultado de todos os filmes que já viu.