“INOCÊNCIA” – Romance de época e de local
INOCÊNCIA contém múltiplos gêneros e abordagens em sua narrativa. Pode ser um romance, um drama histórico, um melodrama e até um faroeste. Em qualquer um dos estilos, tempo e espaço são articulados para contar uma história enraizada na cultura brasileira a partir das marcas do patriarcalismo histórico e de costumes tradicionais no interior do país. Logo, o século XIX e o sertão se encontram ao descrever um período específico e utilizar a natureza de forma expressiva.
Baseando-se no livro homônimo de Visconde de Taunay, o longa metragem narra o caso de amor entre o médico itinerante Cirino e a jovem Inocência no Brasil imperial. Em suas andanças, o doutor é chamado por Martinho Pereira para tratar sua filha adoecida. Médico e paciente se apaixonam, mas precisam deixar o romance em sigilo. Isso porque o pai da moça a prometeu para Manecão, um rico fazendeiro da região, e não aceita ter sua vontade contestada ou a imagem da família manchada.
Como a trama se passa no tempo da monarquia no país, valores como honra, tradição e moral ocupam um papel central nos conflitos. Valendo-se de um roteiro que contou com a participação de Lima Barreto, o diretor Walter Lima Jr. construiu um painel que sintetiza o século XIX. Levando em conta a capacidade descritiva e analítica de Lima Barreto, o texto observa com precisão o imaginário e as práticas da época ao redor da casa de Inocência e Martinho. O pai é movido por uma moral cristã que determina a criação de sua filha e sua própria conduta, arranja um casamento por interesse com um grande proprietário de terras, impede Inocência de fazer atividades que não a ajudariam a ser uma boa dona de casa e se coloca como defensor da imagem da jovem. Além disso, outros elementos da sociedade dos oitocentos se tornam traços paralelos às características centrais apresentadas anteriormente, como o racismo evidenciado pela escravidão africana, o modo de vida rural, tratamentos médicos relacionados a ingredientes naturais e viagens de naturalistas europeus.
Em função desses valores, o romance e os obstáculos para sua concretização estão diretamente ligados à época. Parte do elenco principal cria performances influenciadas pelo modo de agir e de pensar do Brasil imperial, em especial pai e filha. Sebastião Vasconcelos faz Martinho parecer o senhor simpático típico do interior que puxa conversa facilmente até a chegada de Cirino e do zoologista alemão Meyer em sua casa, pois seu perfil conservador logo se revela a ponto de ameaçar quem quer que coloque em risco uma integridade moral marcada por tradicionalismo religioso e submissão feminina. Fernanda Torres cria Inocência mais como um objeto de controle e devoção idealizada do que como uma pessoa autônoma e dona de escolhas próprias, já que sua caracterização acompanha a mentalidade patriarcal do contexto e a cena em que se banha no quarto é interditada como demonstração de sua falta de independência. Edson Celulari é quem entrelaça menos seu trabalho e os arquétipos do período ao fazer um médico dedicado ao seu trabalho, competente na preparação dos medicamentos, preocupado com os pacientes (como se vê na cena em que lamenta não poder ajudar um homem vítima de lepra) e sensível diante de seu amor.
Ao mesmo tempo que a trama se adequa às características de outro tempo, o ambiente também interfere na constituição dos arcos dramáticos e no desenvolvimento dos conflitos. Existem relações significativas entre os personagens e a natureza do interior de Minas Gerais, levando a metáforas que reforçam os momentos de suas vidas, suas posições sociais e suas tentativas de buscar outras alternativas de futuro. Na abertura, a câmera acompanha por longos minutos a saída de uma borboleta do casulo, já em outros momentos, o animal reaparece e faz um paralelo com a protagonista não só por dar nome a uma nova espécie encontrada por Meyer. Tal qual a borboleta, Inocência tenta deixar o casulo de proteção criado pelo pai e alçar seus próprios voos; e na visão de Martinho, o zoologista que chega na região estaria interessado tanto nos animais quanto em sua filha. E a partir do instante em que Cirino demonstra seu amor pela jovem em uma cena em que conversam na floresta, a câmera enquadra os movimentos da lua e os compara com os movimentos do casal antes de se beijarem. Em uma sequência posterior, o brilho azul da lua se assemelha ao brilho que sai da borboleta com nome de Inocência capturada pelo alemão.
Walter Lima Jr. confere importância ao sertão mineiro através de outras estratégias visuais. Por se tratar de uma história que se molda pela área onde se passa, as locações são tão valorizadas quanto os personagens. Graças ao trabalho do diretor de fotografia Pedro Farkas, a composição dos quadros e a iluminação das cenas evidenciam como os acontecimentos e as emoções estão atrelados à vida no interior. Em vários momentos, são feitos planos gerais ou planos de conjunto para destacar a natureza que cerca a propriedade de Martinho, sendo aliada (a noite e as árvores protegem o amor proibido de Cirino e Inocência) ou adversária (a queda de Meyer durante uma expedição em uma falha do relevo). Em outras ocasiões, Pedro Farkas utiliza a luz ambiente ou pequenas fontes de luz para iluminar os cenários com efeitos dramáticos pelo contraste com sombras (nas sequências noturnas, Martinho é filmado em meio a luzes e sombras quando desconfia de algo em relação a sua filha). O fotógrafo também eleva a profundidade de campo e deixa tudo que está em cena em foco para interligar entre os personagens e os cenários (a chegada do médico ao quarto de Inocência).
Outro aspecto que merece menção é o aproveitamento das locações naturais para cenas mais livres em que haveria a sensação imediata de que nenhum evento estaria movimentando a trama. Nesses casos, Martinho, Cirino e Inocência estão sozinhos e apenas tem a natureza ao seu redor. De certa maneira, os três personagens se sentem solitários por algum motivo relacionado às suas próprias vivências e a vegetação local torna essa sensação evidente. O homem mais velho perdeu contato com sua família e se mantém restrito a um universo específico em sua propriedade, chegando a se emocionar quando recebe a carta do irmão mais velho de quem não tinha notícias há muito tempo. Cirino não tem raízes em nenhum lugar nem relações duradouras em virtude do caráter nômade de sua profissão. E Inocência está presa a um modelo social em que não pode decidir os rumos de sua vida e tem poucas esperanças de conseguir se desvencilhar dos planos de seu pai. Tais sequências silenciosas ou filmadas sem diálogos com uma trilha sonora expressiva ainda evocam o romance e o melodrama que formam a narrativa.
Conseguir se relacionar com Cirino, enfrentar as suspeitas de Martinho a respeito de supostas investidas de Meyer, seguir as ordens do pai para se casar com Manecão e buscar algum nível de autonomia em sua vida. Estas dúvidas preenchem o arco narrativo de Inocência à medida que um desfecho trágico gerado pelo patriarcalismo e pela violência se anuncia. O clímax consegue dar outro sentido para a relação entre personagens, período histórico e ambiente local, referenciando uma espécie de faroeste que explora o espaço e o timing da cena enquanto atribui características tipicamente brasileiras a esse momento. Considerando-se tudo que está em jogo, os empecilhos da época e do local podem ser tão grandes que a agência dos indivíduos encontra um limite muito forte e seus propósitos ou são bloqueados ou são fadados a repetir traços de uma cultura conservadora. Não precisando de muitos diálogos para se encerrar, “Inocência” transforma o século XIX e o sertão brasileiro como personagens centrais de um romance histórico que não escapa de suas circunstâncias.
Um resultado de todos os filmes que já viu.