“INFILTRADO NA KLAN” – Todo o poder a todo o povo [42 MICSP]
Somente o diretor Spike Lee poderia entregar um filme com tamanho impacto como INFILTRADO NA KLAN. Em um invólucro de comédia, o longa apresenta uma história real para abordar diversos temas relacionados ao racismo. Porém, a genial abordagem do diretor apresenta muito mais do que isso. Personagens complexos, ótimas atuações e um sólido roteiro constroem um gradiente de reflexões do preto ao branco.
A trama do filme é centrada em Ron Stallworth, um policial negro de Colorado Springs que consegue se infiltrar na Ku Klux Klan. Com uma investigação em andamento, ele tem a ajuda do policial Flip Zimmerman, que eventualmente acaba se tornando o líder da KKK local.
Spike Lee construiu o filme como uma música de rap. Só que ao invés de costurar samples (trechos) de diversas músicas, há aqui uma colagem de várias autorreferências ao cinema. De “Tarzan, o filho da selva” até “Super Fly”, o filme constrói uma narrativa de racismo e segregação na própria história da sétima arte. Há discussões sobre o blaxploitation, a construção racista de alguns personagens em diversos filmes da época. Mas a cena mais intensa é uma montagem meticulosa no terceiro ato, usando o longa “O nascimento de uma nação”, de D.W. Griffith. O famoso trecho do final de “… E o vento levou” serve como a primeira cena de “Infiltrado na Klan”, com a exaltação da bandeira da armada Confederada, numa tentativa de ambientar o espectador no passado que não é tão passado assim. Aliás, essa é a tônica de todo o longa, até culminar no impactante final.
O arco dos dois protagonistas é distinto e muito bem feito. De um lado, o policial negro (Stallworth, interpretado por John David Washington), consciente de sua condição na sociedade, que busca descobrir o máximo de informações sobre a KKK e sobre o movimento negro, mas que acaba se apaixonando. Do outro, o policial Zimmerman (Adam Driver), que passa pela jornada de descobrimento pessoal e identificação social. Ambos os atores entregam atuações enfáticas, o que é fundamental no desenvolvimento da narrativa, pois eles são as lentes pelas quais o espectador enxerga todo o contexto da época em questão.
Talvez o terreno mais perigoso pelo qual o filme pisa é a delicada questão entre os extremos. O movimento negro tinha uma ala que se armava e se preparava para uma guerra. Em contrapartida, alguns brancos encontravam o discurso da guerra na KKK (embora, historicamente, é a Klan que surgiu como uma “proteção” contra os negros livres, que se juntaram aos brancos do Norte e buscavam revanche contra os sulistas). O roteiro reforça esse dilema na relação de Stallworth com Patrice Dumas (Laura Harrier). Ela defende a libertação do povo negro, e promove uma radicalidade encontrada nos movimentos estudantis. Stallworth, por sua vez, acredita que é possível mudar o sistema racista de dentro para fora. Seria pretensioso demais tomar partido, e Spike Lee consegue apresentar as ideias sem “tomar partido”. A história prioriza a narrativa do policial, mas apresenta bons pontos sobre o discurso de Patrice. Fazer isso de maneira natural é algo que poucos cineastas conseguiriam executar.
Lee usa de um recurso estilístico que merece ser mencionado: o absurdo. Alguns momentos parecem “exagerados”, mas na verdade servem como se fossem recortes da realidade para reforçar uma posição ou ponto de vista. Exemplos disso é a reação de Stallworth logo no início do filme, ao encarar a placa que chamava minorias para ser parte da polícia local. A ajeitada do cabelo e o andar característico nessa cena estabelecem a personalidade do protagonista. Outro absurdo, por exemplo, é a escalação de Topher Grace como o Grande Mago da Klan, David Duke. Topher ficou famoso graças a seu papel na série “That 70’s show” como o franzino Eric Forman. Encará-lo na telona como líder de uma seita racista é, de certa forma, provocativo e estapafúrdio.
O final do filme evoca o conceito supracitado do “passado, pero no mucho”. O filme traz uma montagem cruel de momentos reais onde pessoas protestam pela supremacia branca. Muitas das imagens são dos protestos de Charlottesville, de 2017. Assustadoramente, Spike Lee conduz a comédia para um drama de terror real, materializando o medo que prevalece ainda nos tempos atuais. “Infiltrado na Klan” é uma obra necessária, subversiva e provocativa sobre o passado, que pode ser mais presente do que imaginamos.
Apaixonado por cinema e pela arte de escrever.