“INDIANA JONES E OS CAÇADORES DA ARCA PERDIDA” – O fantástico mundo do passado
Nas palavras do historiador e geógrafo David Lowenthal, “o passado é um país estrangeiro”. Na visão da escritora Simone de Beauvoir, “nós vivemos o presente; e tudo o que resta é um esqueleto”. Se reunirmos as duas frases, podemos concluir que o passado se difere do presente como se fosse a cultura de outro povo e que sua interpretação depende da análise dos indícios incompletos deixados pelos seres humanos de outrora. Todos os profissionais que estudam e reconstroem outros períodos históricos realizam tanto um trabalho científico com fontes quanto um exercício de imaginação com o preenchimento de lacunas. INDIANA JONES E OS CAÇADORES DA ARCA PERDIDA propõe que a fantasia retrate o encontro com o passado a partir da arqueologia.
A arqueologia no cinema tem um nome: Indiana Jones. Ele é um arqueólogo que se divide entre as aulas em uma universidade e o trabalho de campo em busca de artefatos com valor histórico. Após voltar de uma missão mal sucedida na América do Sul, o protagonista é contratado para encontrar a Arca da Aliança que, de acordo com a Bíblia, conteria os Dez Mandamentos revelados por Deus a Moisés. Como os eventos se passam em 1936, os nazistas também estão à procura da arca perdida com o objetivo de torná-la uma arma invencível para seus exércitos.
Se o passado é uma categoria singular dotada de características próprias que desperta curiosidade e não pode ser resgatada por completo no presente, os estudiosos elaboram as interpretações mais verossímeis de acordo com as fontes disponíveis. O cinema, por sua vez, não tem esse compromisso e pode dar vazão à fantasia para imaginar o desconhecido. Nesse sentido, a sequência inicial em que Indiana Jones busca uma estatueta de ouro ilustra a imagem idealizada da arqueologia no universo cinematográfico. O trabalho arqueológico aparece como uma aventura fantástica composta por rivais maniqueístas (Belloq), armadilhas mortais (flechas e uma enorme bola de metal), artefatos de poderes místicos (a própria estatueta) e um arqueólogo intrépido semelhante a um agente secreto. É verdade que estereótipos e concepções ultrapassadas ainda se fazem presente, especialmente a caracterização de populações originárias como selvagens exóticos.
Escolher esta abordagem conversa com uma das vertentes do cinema hollywoodiano dos anos 1980: o blockbuster arrasa quarteirão. “Exterminador do futuro“, “Star Wars“, “De volta para o futuro” e “ET: O extraterrestre“, entre outros, formaram uma leva de produções comerciais calcadas no fantástico tendo alguns nomes fortes à frente, como James Cameron, Robert Zemeckis, George Lucas e Steven Spielberg. Os dois últimos estão envolvidos no primeiro filme do arqueólogo, respectivamente como roteirista e diretor. Eles continuam a representar a arqueologia como uma aventura fantástica ao trazer os nazistas para o primeiro plano na sequência do primeiro confronto entre eles e Indiana Jones. A presença do nazismo na trama não só se adequa ao recorte cronológico como também realça a dimensão mística em torno da arca perdida ao fazer referência ao grande interesse de Hitler pelo sobrenatural. Além disso, Steven Spielberg decupa esses primeiros momentos de modo a valorizar o protagonista, apresenta-o saindo das sombras em direção à luz para ganhar destaque e filma sua silhueta como um herói essencial para a cena; e a expor a ameaça dos nazistas, recortados pelas sombras projetadas na parede.
Costumeiramente, os historiadores são comparados a detetives por investigarem um “mistério” do passado. Já os arqueólogos aparecem na obra de Steven Spielberg como agentes aventureiros, não recaindo em uma imagem que poderia ser vista como uma descrição superficial e prejudicial à profissão. A liberdade criativa do cinema opera sob as bases de uma ficcionalização que permite o surgimento de uma figura multifacetada como Indiana Jones. Ele é mostrado como um profissional que tem amplo conhecimento de sua área, visto na breve cena na universidade, embora não tenha explorada a contradição de querer retirar bens históricos de seus locais de origem para deixá-los expostos em museus de outras partes do mundo. À primeira vista, a coragem que o move no trabalho de campo poderia sugerir a audácia de enfrentar tudo, considerando o chicote e a arma de fogo que sempre carrega. Porém, Indiana Jones mostra vulnerabilidades, como o medo de cobra, e atitudes ardilosas que surpreendem, como a resolução de uma luta contra um homem munido de uma espada.
Esta cena se tornou símbolo do personagem ao representar um personagem que não hesita escolher as saídas menos glamorosas para situações difíceis, o que ajuda a humanizá-lo. Tais elementos ganham ainda mais força graças à escolha de Harrison Ford para o papel, ator icônico para a década de 1980 em razão das performances como Han Solo em “Star Wars” e Rick Deckard em “Blade Runner“. Ao encarnar o arqueólogo, Harrison Ford começa a definir uma figura marcante que voltaria a aparecer em outros filmes da franquia por combinar características muito distintas de maneira singular. Inicialmente, Indiana Jones é construído a partir de uma coragem ímpar por conta da sequência de riscos que enfrenta. Com o passar do tempo, os medos e as atitudes menos compatíveis com um herói exemplar aparecem para torná-lo menos idealizado. E, por fim, o ator revela a complexidade de um homem que pode ter cometido erros no passado ao se relacionar com Marion, mas ainda nutre carinho por ela tempos depois a ponto de se colocar em risco para salvá-la.
Quando a fantasia é considerada como parte fundamental das sequências de ação, o impacto sensorial também contribui para uma abordagem imaginativa da arqueologia e do estudo fictício do passado. Na maioria dos casos, Steven Spielberg filma as lutas ou perseguições como momentos ameaçadores que não perdem o caráter lúdico de uma aventura dedicada ao entretenimento. O diretor tem um domínio muito eficiente da energia para essas sequências, sabendo dosar sua intensidade até a elevação crescente em direção ao clímax. A construção estética dos quadros e do ritmo ganha uma proporção ainda mais significativa através da trilha sonora composta por John Williams, um dos maiores compositores da história do cinema e parceiro frequente do cineasta. O maestro cria o tema instrumental característico do protagonista e, assim, reforça a sensação aventureira de toda a narrativa. Este padrão consegue tanto movimentar a trama quanto impulsionar os estímulos correspondentes nos espectadores, algo que já seria suficientemente virtuoso. No entanto, compositor e diretor também extraem de notas musicais levemente alteradas e da decupagem das sequências de ação instantes cômicos que conferem à produção um grau extra de diversão.
“Indiana Jones e os caçadores da arca perdida” inaugurou em 1981 uma franquia muito bem-sucedida em torno do arqueólogo vivido por Harrison Ford. Além do ator, o diretor Steven Spielberg e o maestro John Williams conseguiram fundamentar carreiras de sucesso graças também a esse filme. Alguns traços típicos começaram a surgir na primeira aparição do personagem (o chicote, a arma, as perseguições, os artefatos arqueológicos, a mistura entre realidade e fantasia…) e voltaram a dar o ar da graça nas continuações para enriquecer as experiências cinematográficas. O passado pode ser um país estrangeiro a ser traduzido para termos mais familiares e uma época que conserva esqueletos do que já foi um dia. De qualquer forma, não é possível reconstruí-lo integralmente por maior que seja o esforço de busca e análise de fontes. Nas lacunas que se seguem, a imaginação pode ser bem-vinda. Nos espaços a serem preenchidos, o cinema pode recorrer a fantasia ou crer que a viagem até o passado pode ser um prazerosa aventura com toques fantásticos.
Um resultado de todos os filmes que já viu.