“ILUSÕES PERDIDAS” – Giannoli leitor de Balzac leitor de Rousseau
No estado de natureza, o homem é selvagem, mas é bom – daí a alegoria rousseauniana do “bom selvagem”. No raciocínio do filósofo, o homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe: em seu âmago, o ser humano é bom (feliz, inofensivo, compassivo), porém a sociedade é estruturalmente inclinada a incutir nele paixões e vícios que deterioram essa bondade. Essa desconstituição da bondade natural é o processo pelo qual passa o protagonista de ILUSÕES PERDIDAS.
Lucien é um jovem poeta que decide fugir para Paris com uma mulher casada com quem se relaciona. Porém, na capital francesa, o que ele encontra não é o caminho para a realização de seus sonhos, mas uma estrada muito diferente daquela que planejou trilhar, norteada pelo lucro e pela dissimulação.
Evidentemente, Angoulême não é o estado de natureza, mas a metáfora de Rousseau traduz bem a corrupção de Lucien. Depois do excelente desempenho em “Verão de 85” (clique aqui para ler a nossa crítica), Benjamin Voisin ratifica seu talento em mais um trabalho de alto nível. Mesmo contracenando com nomes mais conhecidos do cinema francês, como Cécile de France e Gérard Depardieu, o jovem não se intimida e não deixa a desejar no papel principal. Aqui, ao invés de um sedutor sólido como David, ele tem em Lucien alguém que aprende a ser o que originalmente não era. Por isso a atuação de Voisin é ainda mais elogiável, já que é possível perceber a progressão do protagonista rumo à realidade parisiense.
O design de produção tem bastante importância na representação visual da mudança de Lucien. Angoulême é exposta como pastoril e vazia, com seus gramados amplos e o pequeno número de pessoas, o oposto de Paris, cujos cenários são suntuosos e bem preenchidos (não apenas com pessoas, o campo é repleto de elementos que o poluem, reprodução visual de uma poluição simbólica). Na fotografia, enquanto o interior aparece com claridade e céus azuis, a capital francesa é pouco iluminada através das velas (outra metáfora para uma cidade espiritualmente sombria). Em Paris, cores quentes são escassas e, quando aparecem, se destacam – é o caso das meias escarlates de Coralie (Salomé Dewaels) e do paletó alaranjado de Lucien. Afinal, é a frieza que deve prevalecer.
A adaptação feita pelo diretor Xavier Giannoli no texto original de Honoré de Balzac é irrepreensível. O roteiro de Giannoli e Jacques Fieschi tem consciência das diferenças de linguagem (literária e audiovisual), razão pela qual modificam elementos narrativos sem perder o espírito balzaquiano. A narração voice over não serve apenas para movimentar a narrativa; o narrador é na verdade um comentador que expressa eventualmente sua visão pessoal sobre a trajetória de Lucien. Na primeira parte do longa, o ritmo é veloz porque é necessário colocar o herói no contexto responsável por sua corrupção, ou, mais especificamente, colocá-lo junto de seu mentor, Étienne (Vincent Lacoste, ainda mais debochado do que de costume, mas não tão engraçado).
De acordo com o narrador, “o mundo mudou”, mas Lucien sequer conhecia o mundo anterior (à Revolução Francesa) para perceber essa mudança. A realidade em que ele se insere é marcada pela frivolidades (a marquesa fala para a “prima provinciana” não segurar o lenço de determinada forma); o teatro não é aquele que acontece no palco, mas fora dele (“a ópera era um interlúdio para o verdadeiro teatro), onde “as piores pessoas são as que têm os melhores lugares” e é necessário “fingir ter o que não (se) tem no presente para ter no futuro”. Neste último caso, a namorada de Lucien compreende melhor do que ele a necessidade de agir pelas aparências para ser alguém, o que é traduzido pelos figurinos soberbos de Pierre-Jean Larroque.
A hipocrisia é sistêmica; a cultura, mascarada pela lei do capital. Segundo Étienne, é possível pagar por qualquer coisa e “isso é o progresso”. O jornalismo é tão corrupto quanto qualquer outra atividade, jornalistas se tornam “comerciantes de palavras” porque a imprensa se torna um negócio muito lucrativo. Não importa se Lucien achou bom ou ruim o livro de Nathan (Xavier Dolan, bastante contido), as pessoas vão esquecer o que escreveu até porque o jornal se tornará papel de embrulho para peixes. Antes, contudo, é necessário que qualquer artista pague bem para receber elogios. A veracidade das informações se tornava detalhe, as fake news já existiam na França do século XIX, sob a rubrica de canards (patos), uma época em que, assim como a atual, as polêmicas chamavam a atenção, mesmo que inverídicas. O fingimento não era problemático, o valor era o da riqueza, pois tudo e todos tinham um preço.
A genialidade de Balzac é revelada no quão atual seu texto consegue ser, mais ainda no espetacular trabalho adaptativo de Giannoli. O Lucien que escreve poemas “para ela” não é o mesmo que se regozija com uma cerimônia em que é o protagonista. A cena, por sinal, é lindamente filmada para cercar o protagonista de tudo aquilo que ele passou a conhecer e que estava, a partir daquele momento, assumindo para si. Angoulême, o estado de natureza, passou a fazer parte de um passado distante; a sociedade corrompeu um rapaz que, em sua essência, era bom. É isso que Rousseau entendeu que a sociedade de sua época fazia, algo facilmente encontrado na contemporaneidade. Difícil é encontrar um Lucien que não se corrompa.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.