“HUNTERS” – A possibilidade do mal
As histórias mais antigas são as que tratam do bem x mal e muitas obras artísticas foram elaboradas no sentido de relatar essa disputa desde que a humanidade iniciou sua trajetória. As eras avançaram e a realidade passou a mostrar as áreas cinzentas fora da dualidade, assim como estimulou a arte a fazer o mesmo. Entretanto, a barbárie já invadiu períodos históricos e testou leituras não maniqueístas do mundo, como a contemporaneidade assistiu durante a emergência do nazismo na Alemanha e como HUNTERS se interessa em abordar.
A série original da Amazon recorre à sua perspectiva projetando uma trama fictícia sobre um tema histórico real: nos EUA da década de 1970 se forma um grupo de caçadores de nazistas, sob a liderança do judeu Meyer Offerman, que perseguem os algozes escondidos na América sob falsas identidades. Enquanto os alemães planejam um grande ato destrutivo, o jovem Jonah se aproxima da equipe após uma tragédia em sua vida e a agente do FBI Millie Morris entra em uma investigação que a coloca no meio do embate entre judeus e nazistas.
O não maniqueísmo começa a ser colocado em dúvida quando os horrores do governo de Hitler e do antissemitismo são encenados. Através de flashbacks de acontecimentos nos campos de concentração ou de relatos sobre o passado da avó de Jonah, são apresentadas inúmeras atitudes monstruosas, irracionais e absurdas incapazes de serem justificadas durante a Segunda Guerra Mundial: torturas, experiências genéticas, execuções, destruição de famílias, sadismo, intimidação psicológica, entre outras. Além da dimensão histórica conhecida, a série também indica como, tempos depois, seria possível encontrar demonstrações de autoritarismo e de brutalidade nos EUA, país que se arvora até hoje na posição de defensor dos direitos humanos e das liberdades: seja na busca por vilões internos (como os negros) citada por Biff Simpson, seja na explicação para a presença de membros do alto escalão do Terceiro Reich em seu território.
O mal é igualmente caracterizado pelos personagens alemães, com destaque para Biff e Travis. O primeiro é um sujeito que faz o necessário para sobreviver, como recorrer à mais baixa traição e à mais cruel violência exemplificadas no chocante prólogo (intensificado pelo contraste entre as cores vibrantes do ambiente e a desumanidade do ocorrido); já o segundo é a representação da vilania, de uma força da natureza cruel movida pelo sadismo e por discursos de ódio sem explicações do porquê é assim (como Anton Chigurh de “Onde os fracos não têm vez“), e decidido a eliminar qualquer obstáculo para os planos nazistas. Com o uso recorrente da cor vermelha na iluminação de cenas violentas, do plano holandês na sugestão de grande perigo e de closes no confronto entre os alemães e seus antagonistas, os diretores reforçam a existência da maldade naquele universo.
Enquanto o grupo de caçadores pesquisa o paradeiro e a identidade dos inimigos e, em seguida, os executa, o embate maniqueísta não desaparece. Pelo contrário, ele se enriquece com as sucessivas abordagens empregadas: inicialmente, com a negação da dualidade simples na fala de Jonah sobre vilões da cultura pop para os amigos e na do chefe de Millie sobre os crimes na área; depois, com a problematização de uma separação estanque através da metáfora da luz e da escuridão, materializada nas falas de Ruth e de Millie para o protagonista sobre fazer o certo, nos riscos de os judeus se rebaixarem ao recorrerem à violência e nas referências ao jogo de xadrez (a abertura dos episódios revela muito sobre as peças da disputa e dos fatos que acontecem aos personagens); e se encaminha para um embate pela alma dos indivíduos, que transitam de um lado para outro deixando o público incerto do que pode acontecer.
Os métodos usados pelos caçadores não deixam de ser frutíferos para os debates sobre memória e identidade de um povo. A interação de Meyer com o grupo revela a necessidade de uma luta pela necessidade de lembrar o Holocausto, de enfrentar práticas impositivas de esquecimento, de cultivar tais lembranças para evitar repetições no futuro e de preservar narrativas dos judeus contra o apagamento de traços de suas biografias. Em outros dois episódios, o viés simbólico é trabalhado a partir das ideias de recuperar histórias de vidas saqueadas pelo roubo de posses materiais e de proteger sua cultura com a valorização de rituais religiosos. Simultaneamente, questões referentes às punições dos nazistas são mencionadas: as desculpas usadas de que apenas cumpriam ordens ou não tinham noção do que acontecia; as citações ao Tribunal de Nuremberg; a demonstração de que muitos escaparam e viviam tranquilamente escondidos com outros nomes; e as diferenças entre fazer justiça e ter uma vingança.
As evoluções de Meyer e Jonah também seguem o confronto entre luz e escuridão. A imponência, o sotaque e a força dramática de Al Pacino torna o líder do grupo um homem sem hesitações e apegado aos costumes judaicos, enquanto percorre uma jornada de aproximação com a luz já que possui uma escuridão intensa dentro de si. A impulsividade, os rompantes emocionais e a naturalidade dos conflitos internos desempenhados por Logan Lerman fazem o jovem judeu atravessar um duplo percurso de identificação com a comunidade judaica e de debate entre manter a luz da misericórdia ou se entregar para a violência da escuridão.
Mesmo embarcando na perspectiva central da produção, poucos personagens coadjuvantes são desenvolvidos – uma pena, já que a diversidade religiosa, étnica e de gênero do elenco serviria muito ao propósito dramático. Millie sofre com os dilemas da justiça tradicional e com os preconceitos da época por ser mulher negra e lésbica; o casal formado por Murray e Mindy convence na afetuosidade e no fardo que carregam desde o Holocausto. Os demais recebem pouca profundidade (Joe e Harriet) ou são desperdiçados (Roxy e Lenny). Além da falta de liga para o elenco como um todo, os momentos de ação são irregulares, soando genéricos, sem tanta energia e com furos de roteiro as sequências de execução dos nazistas e de conspiração dos alemães.
Falhar na construção da ação passa também pela prioridade dada ao drama e às discussões históricas e temáticas. Porém, mesmo naquilo que “Hunters” tem de melhor, algumas oscilações ocorrem quando se arrisca ao mudar de tom: blocos estilizados graficamente com humor (no estilo tarantinesco de “Bastardos Inglórios“); a reviravolta do último episódio, problemática do ponto de vista histórico; e a abordagem fantástica da cena derradeira que não dialoga com o realismo adotado até então. Ao final, a decisão de correr tantos riscos não compromete a experiência por inteiro, porém quase chama a atenção para elementos que diminuiriam sua leitura de um período marcante da História, infelizmente por sugerir que o mal pode sim existir.
Um resultado de todos os filmes que já viu.