HONEYLAND – O drama real [43 MICSP]
Por mais trágico que possa ser um drama, há sempre o conforto de que se trata apenas de um filme de ficção. Mesmo quando embasado em fatos, é “apenas’ um filme”. No caso dos documentários, normalmente não há muita dramaticidade, razão pela qual eles não envolvem tanto os espectadores do ponto de vista emocional. HONEYLAND é o exemplo não tão comum de documentário que consegue ser mais dramático que muitos filmes ficcionais do gênero.
O longa acompanha Hatidze, uma mulher que divide a sua vida entre a apicultura e o cuidado da mãe de idade avançada e doente. Sua vida se torna mais difícil quando uma família de turcos se muda para a isolada região em que habita, na Macedônia, adotando métodos de extração de recursos naturais muito mais agressivos que os dela.
Hatidze é uma protagonista fascinante, uma guerreira cuja história de vida é admirável. Nascida em 1964 (portanto, já não é tão nova), precisa cuidar da sua mãe de oitenta e cinco anos, que tem problemas auditivos e motores, além de só enxergar através de um olho (e sem muita nitidez). Em alguns momentos, a relação entre elas se inverte, pois a filha dá ordens para a mãe, pensando, é claro, no seu bem (comer devagar, esticar as pernas etc.). Em todos, contudo, fica claro o afeto entre as duas (como quando a mãe lhe pede um beijo).
Cabe à protagonista garantir o sustento de si e da genitora vendendo o mel que ela extrai, através de um labor bastante artesanal, penoso e inquestionavelmente cansativo. Na sua visão, o segredo do sucesso na apicultura é pegar apenas metade do que as abelhas produzem de mel, deixando metade para elas. Há um respeito evidente à natureza, de modo que ela extrai apenas o que realmente precisa; sem fins lucrativos, mas de subsistência.
Há um choque muito grande com a chegada da família de turcos. Enquanto estão apenas Hatidze e sua mãe, reina a tranquilidade. Hussein representa o instinto predatório do ser humano e, de certa forma, a natureza humana como é hoje vista, pautada na agressividade e no trabalho em grande escala (objetivando o lucro). O relacionamento dele com a esposa, por exemplo, é de cobrança (pela produtividade e pelos filhos), da mesma forma com que ocorre com os filhos. É muito significativo que Hatidze seja mais carinhosa com as crianças do que o próprio pai dos infantes.
As crianças também têm uma representatividade relevante: eles não vão à escola, então ocupam o tempo brincando ou ajudando no trabalho – mesmo que isso signifique se machucar. Algumas cenas podem ser até mesmo chocantes para o público mais sensível (por exemplo, uma delas leva uma picada de abelha que deixa seu rosto bem inchado). Os ensinamentos transmitidos pelos pais são diametralmente opostos aos que Hatidze tenta passar a eles, no pouco que convivem.
Essa ideia de choque cultural – leia-se, o modo de vida da protagonista (por assim dizer, ecosustentável) versus o de Hussein (predatório) – é demonstrada, dentre outros aspectos, através da montagem, que dá preferência a transições bruscas entre alguns planos, o que chega a ser desconfortável para os olhos (em especial da noite para o dia). O documentário tem cenários modestíssimos (a casa de Hatidze parece uma ruína) e uma fotografia árida, evocando a atmosfera inóspita da região macedônia onde foi filmado. A direção de Tamara Kotevska e Ljubomir Stefanov é razoável, mas comete deslizes em aspectos simples, como o foco (especialmente em planos-detalhe de abelhas).
O fato de Hatidze usar sempre a mesma roupa (uma camisa amarela, uma saia e lenço estampado no cabelo) durante o longo período de filmagem (fator exposto pelo calor e pela neve) é uma demonstração do quão simples ela é, o que não a impede, porém, de ter personalidade. Pelas aparências, seria difícil imaginá-la pechinchando no Skopje ou pintando os cabelos.
Em visão macro, o filme é uma metáfora do modo de vida da humanidade, que, em regra, tende a explorar ao máximo o que está à sua volta, inclusive de maneira irresponsável. Na ótica micro, o documentário pode surpreender como uma história tocante de uma guerreira. É possível fazer diversas ilações sobre o futuro de Hatidze. Quanto ao planeta, seguindo o atual ritmo, há muitas certezas (exemplificadas em “Honeyland”).
Está aí outro drama, ambos igualmente reais e desoladores.
* Filme assistido durante a cobertura da 43ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.