HISTÓRIA DE UM CASAMENTO – Casamento indissolúvel do humor com o drama [43 MICSP]
Com um roteiro consistente, uma direção muito boa e atuações brilhantes, HISTÓRIA DE UM CASAMENTO é um filme que atinge um patamar de excelência com tamanha facilidade que não parece real. É uma carga monumental de realidade retratada com sensibilidade ímpar. É cinema de altíssimo nível.
Ao contrário do que sugere o nome (que é tradução literal do título original do longa, “Marriage story”), não se trata de um filme focado em como um casal se uniu, mas como eles querem se separar. Nicole e Charlie estão passando por um processo de divórcio, inicialmente amigável, mas que se torna litigioso quando ela decide contratar a advogada especialista Nora Fanshaw. No meio de tudo isso está Henry, o filho do casal, ainda criança, cuja guarda terá de ser decidida.
O filme certamente não seria o mesmo se o trabalho do elenco não fosse espetacular como é. No papel de Nicole está uma humanizada Scarlett Johansson, distante das personagens glamourizadas a que está acostumada (por uma indústria que subestima seu talento). Ela é uma mulher comum com problemas comuns, capaz de tudo pelo filho e que ama o marido, mas que não aguenta mais um relacionamento que, do seu ponto de vista, se tornou insustentável. Mudando-se para a casa da mãe, é à vontade desta que ela se vê submetida, no lugar das decisões unilaterais do marido. Para piorar, ela precisa aguentar mãe e (agora ex-)marido como amigos. Entretanto, Charlie é o pai de Henry e constitui parte importante da história de Nicole – inclusive no aspecto profissional, o que talvez tenha ajudado a minar o casamento. Se ele se dispõe a arrumar o cercado da casa à noite, não custa cortar o cabelo dele, por exemplo.
Ao contrário de Johansson, Adam Driver tem se desafiado mais na carreira, mas o papel de Charlie é o que mais exigiu dele força dramática. Enquanto ela cria uma personagem cuja fragilidade é revelada aos poucos (como na voz em tom de choro na conversa com a advogada), ele constrói um homem escancaradamente desolado por ter deixado a felicidade se dissolver. Quando ela chama o seu nome, o giro que seu corpo faz com energia leonina destaca ainda mais o olhar de alguém que espera ouvir algo como “eu mudei de ideia”, decepcionando-se com “você esqueceu o envelope”. Na sua ótica, Charlie cometeu erros sim, mas nada que justificasse um rompimento definitivo. Como ela pode reclamar de uma traição se ela o obrigou a dormir no sofá? Parece que ela não considera sua personalidade de diretor, aquele sujeito que quer o controle de tudo, quer dar a palavra final sempre na melhor das intenções. Mesmo quando ele a critica, é para o bem dela, para ela se tornar ainda mais incrível.
O roteiro de Noah Baumbach é solidamente construído na divisão entre a visão de Nicole e a de Charlie, tanto que o filme tem, a rigor, dois prólogos, de igual estrutura, em que eles falam um sobre o outro, mediante narração voice over e cenas que ilustram o que é narrado. Eles se admiram, se amam. Mas não conseguem mais conviver. Tudo parece tranquilo quando Nora entra na trama para balançar as estruturas e manipular – no bom sentido – o espectador. Trata-se de uma coadjuvante fundamental na narrativa, pois estimula o crescimento de uma semente plantada já no início: quem tem razão? A empatia fica cada vez mais divisiva, tornando-se impossível não concordar com algum deles ao menos em algum momento.
Adotando ou não um dos lados, Nora funciona como uma vilã para quem quer que tudo acabe bem; ela pode ser a psicóloga que a cliente precisa ao demonstrar vulnerabilidade, mas certamente é uma advogada implacável contra a parte adversária. Com figurino extremamente elegante desde a primeira cena em que surge (sapatos de salto alto vermelhos, jeans apertados, camisa branca e blazer rosa, opostos pelo diretor pela camisa cinza de uma Nicole sem maquiagem), Laura Dern é fenomenal como uma personagem tão diabólica quanto divertida. A atriz rouba a cena. Juntamente com a Cassie de Merritt Wever, ela tem o melhor do humor extratextual (no caso desta, a cena de imitação de sotaque britânico é hilária).
Mas nem tudo são acertos. No clímax dramático, quando Johansson e Driver estão no ápice de suas atuações já esplendorosas, o exagero de cortes é prejudicial. Eles se ofendem, jogam baixo, pegam pesado… mas os cortes frenéticos tiram a atenção da intensidade da cena, que só não é inesquecível por esse equívoco. Não à toa, quando a câmera tem um plano que dura mais do que três segundos, em zoom in, a pulsante emoção enfim explode. A montagem de Jennifer Lame não é ruim por completo, fazendo algumas metáforas visuais interessantes (como a fusão entre planos que sugere um avião caindo) e que combinam com a mise en scène formidável de Baumbach, mas está distante do nível geral da película. Se não fosse esse trabalho autossabotador, dentro da proposta, “História de um casamento” estaria perto da perfeição.
É belíssimo ver como um bom diretor não precisa de recursos nababescos para ser genial. Colocar Nora e Charlie em posições distintas no metrô é suficiente para expor a oposição em que se encontram. No roteiro, sutilezas como o paradoxo financeiro do divórcio litigioso (é uma verdadeira contradição pagar advogados um dinheiro que poderia ser investido no filho) e a base religiosa do machismo (a diferença bíblica da maternidade e da paternidade mencionada por Nora) servem de fio condutor para um humor inteligente e requintado, que, ironicamente, se casa com o drama que ampara a narrativa. Esse sim um casamento indissolúvel.
* Filme assistido durante a cobertura da 43ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.