“HERÓIS NUNCA MORREM” – Disperso em muitos aspectos
O poder de contar histórias está na essência de HERÓIS NUNCA MORREM. Desde a forma como a narrativa acompanha os conflitos dramáticos até a maneira como os personagens se relacionam com seus arcos pessoais, o filme busca explorar o peso que se carrega ao dar sentido à existência. Porém, a densidade dessas reflexões se dispersa em uma trama feita de momentos isolados e em uma abordagem marcada por escolhas que nem sempre se sustentam.
A perspectiva adotada pelo projeto envolve a metalinguagem. Joachim viaja para a Bósnia com três amigos quando começa a suspeitar que pode ser a reencarnação de um soldado bósnio que morreu no mesmo dia em que ele nasceu. Alice, Virginie e Paul são os colegas que levam equipamentos de filmagem para produzir um filme com um duplo objetivo: rastrear as possíveis origens do soldado e procurar seus familiares por Sarajevo.
Trata-se de uma metalinguagem não somente por colocá-la no roteiro. A diretora Aude Léa Rapin cria uma abordagem documental para seu primeiro longa de ficção, que se inicia nos moldes do found footage quando Alice filma conversas com Joachim sobre a eventual reencarnação e registra possíveis memórias da vida anterior do homem. Ao longo da viagem, a estratégia documental muda fazendo com que o ponto de vista das cenas seja o olhar da câmera utilizada por Paul (a passagem mais interessante é a alteração de enquadramento quando Paul está no bagageiro de um carro filmando a estrada ao longe). Com essas decisões formais, a cineasta comenta sobre a fluidez das barreiras entre o que é real e o que não é através do personagem com a câmera e de alguns diálogos (por exemplo, “isso é um filme ou uma reportagem?”).
Mesmo que essa discussão sobre o real e o ficcional apareça, a narrativa não lida tão bem com os efeitos estilísticos da encenação documental. Os planos trêmulos e a espontaneidade da câmera na mão apenas estão presentes nas primeiras sequências com Joachim e Alice; mais adiante, com a operação do equipamento por Paul, a liberdade de movimentos seria ainda mais coerente (afinal, muitos planos são feitos em deslocamento), mas a construção visual é rigidamente disciplinada. Além disso, a filmagem por parte de Paul não é apropriada pelo filme com tanto valor dramático, já que há momentos capazes de evocar a reflexão principal (a falta de necessidade de mostrar o protagonista tomando banho) e outros incapazes de justificar as razões para ter a câmera ligada (conversas banais em situações que o cinegrafista não estaria por perto). Assim, a discussão temática é constantemente interrompida por momentos menos expressivos.
Em termos de conflitos dramáticos, a narrativa também se dispersa entre elementos com grande potencial e outros que mal possuem espaço para se desenvolver. Falta ao roteiro equilibrar a importância de cada aspecto da trama – a dimensão sobrenatural da reencarnação, os dilemas da identidade do protagonista, os desdobramentos das guerras na Bósnia e a reviravolta em torno da saúde de um dos personagens – para que eles não se sobreponham retirando impacto do anterior. Desse modo, o texto fica inchado tendo que lidar com várias questões e ainda administrar um plot twist que redireciona a obra – temporariamente, cria-se a impressão de que a história chegou a um fim precoce e que ela se estende mais graças a cenas vazias ou de pouco apelo emocional.
No entanto, a resposta precoce quanto à duvida sobre a reencarnação tem o intuito de conferir outra camada à discussão inicial proposta: as relações entre os vivos e mortos. Essa nova questão pode ser sentida nos encontros de Joachim com pessoas ligadas ao soldado, na explicação de Alice para fazer o filme apesar de o bom senso apontar o contrário e os questionamentos feitos a ela sobre fazer filmes acerca dos mortos e não dos vivos. Tais cenas seriam mais expressivas se não fossem impactos isolados dentro do conjunto da obra, que não encadeia em uma sequência considerável momentos evocativos dessa questão. Ao mesmo tempo, a força dramatúrgica do elenco empalidece diante da construção simplista de Jonathan Couzinié para o protagonista (as expressões faciais de angústia são meras muletas de interpretação), cabendo a Adéle Haenel criar Alice como uma personagem em conflito interno entre agir com a razão e ajudar o amigo (algo brilhantemente evidenciado na cena em que explica como Joachim deve agir).
“Heróis nunca morrem” pode até trazer elementos dramáticos interessantes a partir de debates possibilitados pelo found footage, mas o grande centro temático da produção custa a se evidenciar. Portanto, a forma de trabalhar a questão das vítimas de conflitos militares parece superficial, surgindo esporadicamente e sem contemplar desde o princípio as mazelas da guerra da Bósnia para quem sobreviveu. Em certo sentido, o estilo minimalista da decupagem sem trilha sonora e diálogos e de planos longos traduz visualmente uma jornada íntima e pessoal que não depende de grandes rompantes emocionais. Contudo, tais escolhas adiam em demasia a ideia promissora de que as relações entre vivos e mortos podem envolver posturas não tão realistas como se poderia supor.
* Filme assistido durante a cobertura da 11ª edição do My French Film Festival.
Um resultado de todos os filmes que já viu.