“HEREGE” – Conversão
Nos primórdios da humanidade, prevalecia a mitologia: histórias eram criadas para explicar tudo (do surgimento do mundo ao porquê das chuvas e tempestades). Em seguida, vieram as religiões: construídas também em torno de histórias, foram elaborados rituais e um regime de regras de comportamento. O que há em comum é o desenvolvimento de narrativas – às vezes similares, inclusive – com o objetivo de estabelecer verdades universais. Para alguns, elas são tão universais que se torna imperioso converter os demais. A ideia acaba sendo péssima para a dupla principal de HEREGE.
A irmã Barnes e a irmã Paxton são duas jovens missionárias mórmons com a tarefa de entregar folhetos para pessoas de uma região que lhes foi designada pelo seu superior, no intuito de talvez as converter. Depois de uma longa jornada, chegam à casa do sr. Reed, um homem que havia demonstrado interesse em conversar sobre essa religião. A última visita do dia pode acabar sendo uma perigosa última visita de suas vidas.
Escrito e dirigido por Scott Beck e Bryan Woods, o filme é voltado a questionar tudo, revelando que a desconfiança pode ser uma arma bastante útil. Pautado sobretudo na religiosidade, o longa é provocativo ao falar sobre um tabu nessa área, a sexualidade. Nos minutos iniciais, a conversa sobre camisinhas e a ironia escrita no banco em que a dupla está sentada (aparecendo em zoom out), além da insistência relativa à esposa de Reed, servem de vetor para o pensamento que vem em seguida, que é um subtexto de assédio sexual. Do que Barnes e Paxton precisariam ter medo? Os cineastas induzem a plateia a temer pelas duas, como se estivessem prestes a serem vítimas de um crime sexual.
Entretanto, não é isso que ocorre. Ainda no início do longa, a apresentação de Reed indica claramente que ele não é um predador sexual. Boa parte disso se deve à excelente atuação de Hugh Grant no papel, cuja calma quase o despe da posição de ameaça. Mesmo quando Reed se revela perverso – o que está constantemente na iminência de ocorrer, disso não há dúvida -, a naturalidade com que se expressa contradiz o conteúdo final de seus atos. Apesar de simpático para tentar atrair as jovens (e a experiência de Grant em papéis de galã milita em seu favor), fica evidente que existem intenções ocultas, mas quais seriam elas? Enigmático a todo momento, que tipo de ameaça ele representa?
Sophie Thatcher, como Barnes, e Chloe East, como Paxton, não conseguem traduzir o medo de suas personagens à altura do que o filme constrói em sua primeira metade. Nessa parte, a obra é um suspense muito bom, mais precisamente, um suspense de enclausuramento, que se aproveita bem da expectativa criada pelo ótimo uso da linguagem audiovisual pelos diretores. No design de som, os ruídos (rangidos, passos, relógio…) criam a suspensão. Na fotografia, o uso de grande-angular em um aposento enaltecem a sensação de clausura, sem olvidar as paredes assimétricas criadas pelo design de produção, bem como a cor verde musgo, alegoria para o pântano em que Barnes e Paxton estão ingressando. Na segunda metade, Beck e Woods abraçam o terror (usando ferramentas como o gore, redução da iluminação e jump scares), não tendo a mesma eficácia e, principalmente, enfraquecem o discurso elaborado até então, ao invés de o reforçar.
Ainda que em tom seja exageradamente professoral em alguns momentos (até mesmo com uso de giz e um quadro-negro improvisado), a primeira metade é acertadamente provocativa. Às vezes, o texto é um pouco raso (o que se torna irônico, dado o teor de um diálogo), mas a tese das religiões como iterações é sólida o suficiente, sobretudo quando reforçada por analogias mordazes (mas não por isso menos verdadeiras). Não há nenhuma novidade no que é dito – ao menos para quem já se propôs a pensar sobre o tema -, mas as comparações grosseiras se encontram na linha tênue entre o ofensivo (às religiões e aos religiosos) e o convidativo (para refletir). Uma virtude inegável é a criatividade: quem pensaria em uma relação entre as religiões e, por exemplo, o jogo “Monopoly”? Ou entre elas e as músicas “The air that I breathe” (The Hollies), “Creep” (Radiohead) e “Get free” (Lana Del Rey)? É nesses momentos que o longa atinge seu ápice de irreverência (com diálogos bem melhores que os exemplos de religiões específicas).
Diegeticamente, a solução encontrada para o conflito de “Herege” é decepcionante. Tematicamente, a conclusão verbalizada é questionável em razão da generalidade exacerbada, reforçando a percepção de que seu discurso acaba sendo raso. O que há de positivo na primeira parte do longa é compensado na segunda parte, com um abandono do teor intelectual para uma dinâmica entediante, apesar de pretensamente instigante. Quando o filme acaba, a impressão deixada é de uma tentativa de converter o público com argumentos superficiais.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.