“HEBE – A ESTRELA DO BRASIL” – Não se reprima
Hebe Camargo foi uma mulher à frente de seu tempo. Defensora de minorias grupos vulneráveis, ela enfrentou em rede nacional a censura dos anos finais da ditadura militar. É essa batalha o recorte de HEBE – A ESTRELA DO BRASIL.
O longa não é exatamente uma cinebiografia, limitando-se à década de 1980, período de transição da ditadura para a democracia. Na época, a já consagrada e popular apresentadora Hebe Camargo decidiu a apresentar seu programa com maior liberdade, tendo, porém, de enfrentar diversos obstáculos pessoais e profissionais.
Essa opção do roteiro de Carolina Kotscho é seguida com fidelidade e revela inteligência, principalmente porque a tendência de muitas biopics tem sido elencar períodos específicos da vida do biografado. Assim, a ideia do texto é não se resumir à sua protagonista – ainda que enaltecendo a sua relevância na área em que atuava -, ampliando para um debate crítico. Como conclusão, inevitável perceber que o Brasil pouco se modificou, considerando: a quantidade de políticos que fogem do labor (o que é visto na cena em que ela estampa uma matéria de jornal) e se ocupam de temas que não deveriam (no longa, os ataques a ela); a parcela da sociedade intolerante e preconceituosa (o que inclui o marido de Hebe); e, do ponto de vista dos costumes, os esforços governamentais para impedir que o público veja na tela o que o governo não quer que seja visto (elemento representado pela censura).
Hebe é uma protagonista fascinante. Multifacetada, ela esbanja carisma e simpatia na frente da câmera, enquanto que, longe do palco, revela-se uma mulher comum, bondosa, com personalidade e muito dinheiro. Consciente que não é possível “falar só de bundinha e de peitinho” na televisão, ela se preocupa com a inflação que aflige o povo, atentando-se ao que acontece no seio social a despeito de fazer parte da parcela mais favorecida (como ela mesma menciona, graças ao período em que não era favorecida). Como pessoa, Hebe (ao menos aquela retratada no filme) é fraterna, defendendo, nas suas palavras, “os excluídos, quem precisa”. Contra o rolo compressor da censura (cuja publicidade é a de que não existia mais, o que ela reiteradamente frisa), a protagonista permite exposições escandalosas na época, como de travestis e transexuais (que, verdade seja dita, ainda hoje encontram dificuldade para ter espaço). Em uma época na qual a sigla LGBT (LGBTQ, ou ainda LGBTQIA+) era resumida a “bichas”, ela era capaz de afirmar que “modelo transexual é uma coisa, travesti é outra”, além de defender uma travesti pela sua arte.
Do ponto de vista mais interno, Hebe se revela religiosa, talvez até mesmo com maior intensidade que os religiosos profissionais. Por trás do largo sorriso, da risada graciosa e do marcante vício de linguagem (“gracinha”), Andrea Beltrão (espetacular!) consegue reproduzir também a Hebe além da fama: como mulher e mãe. No primeiro caso, a protagonista enfrenta um marido ciumento e possessivo, no que o filme aborda um relacionamento tóxico quase em flashes; no segundo, ela aparece como uma mãe carinhosa e protetora que tem em seu filho único um bem precioso e bastante semelhante a ela mesma. O que é mais flagrante que eles têm em comum é a maneira como tratam pessoas anônimas: enquanto Hebe é capaz de perceber o emagrecimento antinatural de seu cabeleireiro, Marcello (Caio Horowicz, muito bem) prefere a companhia dos empregados à dos amigos ricos da mãe e do padrasto.
Razoavelmente bem dirigido por Maurício Farias, a grande virtude imagética da película reside na sua excelente direção de arte, que repete os figurinos extravagantes de Hebe, sempre com lantejoulas e purpurina (eventualmente, ombreiras que dão a impressão de um corpo maior), e as joias (brincos, pulseiras, colares, peças que se destacam) caríssimas que ela ostentava. Tudo sempre com muito – muito mesmo – brilho. Se ideologicamente o que ela procurava era liberdade; visualmente, era brilho, o que justifica o subtítulo genérico do longa.
É possível que “Hebe – a estrela do Brasil” gere uma sensação de nostalgia perante parcela do público, sobretudo considerando as várias participações especiais (sempre através de intérpretes, não as pessoas em si, geralmente em alto nível de atuação). O que pode tornar o filme, todavia, ainda mais interessante, é pensar que pouco evoluiu no Brasil, um país onde o verso “não se reprima” não é apenas o excerto de uma música dos Menudos, mas um imperativo mal visto por alguns setores sociais. Se fosse viva, Hebe estaria lamentando as contemporâneas formas de repressão à população LGBT (e às demais minorias).
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.