“HARRIET” – Merecia melhor
É muito provável que HARRIET seja um filme muito aquém do que representou sua protagonista, Harriet Tubman (o que se percebe por uma simples pesquisa pelo seu nome na internet). Pensado para ser edificante em razão de uma história que só não é inacreditável porque é verdadeira, o longa pode gerar algum interesse a título de curiosidade, mas não muito mais do que isso.
Em 1849, Minty, uma escrava ansiando por sua liberdade, tem o pedido negado por seus donos, mesmo estando amparada pela lei. Percebendo a impossibilidade de ser libertada amistosamente, ela decide fugir. É o começo da trajetória de Harriet Tubman – nome que ela passou a adotar – como ativista política, ajudando centenas de escravos a fugirem.
O roteiro de Kasi Lemmons (também diretora da obra) e Gregory Allen Howard deixa muito a desejar, apenas esboçando os primeiros anos de Harriet. Evidentemente, o período anterior à fuga pouco tem a dizer para além da sua condição de escrava. Quanto mais a narrativa se desenvolve, todavia, menos ela consegue engrandecer o marco histórico que Harriet estava se tornando. Por exemplo, é pobre a problematização da (aparente) falta de união dos negros, o que fica reduzido a uma fala de uma coadjuvante e um discurso da protagonista (mais ao final). O assunto poderia estimular reflexões sobre o presente, porém a superficialidade da trama é evidente nesse quesito.
Há uma preocupação maior em ressaltar a fé inabalável de Harriet. Porém, nem isso é feito com esmero: Lemmons coloca as visões da heroína em flashes dessaturados com filtro azul acinzentado, contudo eles são extremamente mal aproveitados em relação ao texto. Em mais de um momento, é dito que ela tem desmaios, todavia o que aparenta é que são apenas visões sobre o que está acontecendo ou prestes a acontecer. Não se trata de acreditar ou não, mas de dar alguma utilidade às visões, que não deveriam ser meras engrenagens narrativas. As cenas movem a trama, mas são frias, sem emoção.
Nem mesmo a talentosíssima Cynthia Erivo consegue dar brilho ao papel. Sua atuação é coerente com a proposta, sobretudo no que concerne à transição de Minty para Harriet. Fica claro que a menina tímida, introspectiva e mais motivada por um desejo voraz se torna uma mulher que carrega uma bandeira e não tem receio algum de concretizar o que idealiza. Se no começo ela ora em tom lamurioso que seu mestre é um “homem mau”, demonstrando ainda obediência ao pai, depois fica bem claro que ninguém é capaz de tolher suas ações – jamais abandonando suas crenças. Entretanto, na segunda metade da película, é tudo muito acelerado, quase insosso.
O que torna claro o trabalho mal elaborado pelo roteiro em relação à protagonista é o êxito em relação a uma coadjuvante: interpretada por Janelle Monáe, Marie Buchanon é muito mais cativante, mesmo que representando muito menos em termos históricos. Na perspectiva limitadíssima do filme, Harriet parece preocupada somente com a própria família, ajudando outros que eventualmente apareciam no caminho. Não é isso que é dito, mas é o que parece dizer (na prática, uma preocupação exacerbada com um subplot, referente à irmã, pouco cativante). Por outro lado, o mero fato de Marie ser mulher, negra e dona de um estabelecimento já se torna chamativo.
Do ponto de vista imagético, a direção é pouco inspirada, salvo, talvez, no figurino. No início, o vestido azul e branco da protagonista (em tons simulando o vestuário de presos de algumas sociedades) dialoga bem com o lenço vermelho que ela usa na cabeça (representando a vontade flamejante de ser livre), melhor ainda quando as roupas se desgastam na empreitada inicial. Da mesma forma, quando é atingida a liberdade, seus cabelos ficam soltos, uma metáfora bastante evidente. Em outra cena, ao encontrar seu marido, Harriet usa um vestido verde, cor que simboliza a esperança de uma nova vida. Não obstante, a mise en scène da diretora é tímida; os cenários, genéricos.
Outra prova de uma matéria-prima subutilizada reside na trilha musical: “Stand up”, canção que concorreu ao Oscar, surge somente nos créditos finais; “Goodbye song” aparece solitária em função intra e extradiegética, praticamente a única oportunidade em que a voz potente de Cynthia Erivo brinda o público. A verdadeira Harriet Tubman merecia um filme melhor. E o público, também.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.