“GUERRA FRIA” – Uma obra inestimável [42 MICSP]
Nem todo romance precisa ser meloso e GUERRA FRIA é a prova disso. O filme é tocante sem ser piegas, sensível sem ser clichê e original sem ser inverossímil. Poucos longas desse gênero alcançam tais atributos com tamanha facilidade, o que faz do filme polonês (em coprodução com a França e com o Reino Unido) uma obra inestimável.
A história começa na Polônia de 1949 e acompanha as idas e vindas, durante vários anos, do casal Zula e Wiktor: ela, uma aspirante a cantora; ele, um músico altamente capacitado. Em tese, o amor deles pela música seria um facilitador para seu relacionamento. Porém, a época conturbada e politicamente instável impede a consumação desse amor, já dificultoso pela história de vida do casal e por suas personalidades distintas.
A Zula de Joanna Kulig é claramente uma mulher decidida e de temperamento forte. Esperta, ela percebe como ter maiores chances de ingressar no grupo artístico no qual Wiktor é mentor e não perde a oportunidade. Apesar de calorosa (sua primeira canção solo é “Coração”), seu backstory é de um drama deveras triste e que cumpre a função de explicar a razão por que ela aparenta tanta força psicológica. A interpretação de Kulig é cirúrgica para transmitir a passagem do tempo (fator fundamental na película), de uma menina introspectiva que oculta uma voracidade por sucesso a uma mulher autossuficiente e segura de si.
A caracterização de Zula é um elemento visual feito com muito esmero para reforçar a mudança da personagem (uma transformação interna que reverbera no exterior). Os vestidos simples e de design singelo dão lugar a um look mais sensual e maduro; a franja dá lugar a um corte channel. Wiktor fica orgulhoso do amadurecimento da amada, contudo a atuação de Tomasz Kot não chega a ser fascinante como a de Kulig. Não que ele vá mal, ele vai bem, mas ela é extraordinária no papel. A singeleza da caracterização de Wiktor colabora para a simplicidade da personagem e da atuação – barba por fazer, cabelo raspado e calvície são recursos básicos, ainda que minimamente eficientes. A efervescência de Zula é oposta à tranquilidade de Wiktor, que chega a um nível de passividade absolutamente antagônico à persona dela.
O roteiro de Pawel Pawlikowski e Janusz Glowacki, mesmo tendo como foco o relacionamento turbulento de Zula e Wiktor, não olvida questões periféricas aos dois, inerentes à época e ao local em que vivem e que têm implicação direta na dificuldade para solidificar esse amor. Como o próprio nome já indica, a narrativa se passa durante o período da Guerra Fria, que, embora não envolva batalhas no sentido físico, reverbera de uma maneira também nefasta. Por exemplo, no grupo em que Wiktor trabalha, autoridades querem que os artistas cantem sobre reforma agrária e sobre paz. Trata-se de um intento de manipulação e até mesmo patrulhamento ideológico, o que ele não é contrário necessariamente por convicção política, mas artística. Não se trata de subestimar a inteligência dos cantores, mas evitar a alienação das massas. Cantar “maravilhoso Stalin” não seria um problema em si mesmo, não fosse um grupo de “autêntica arte folk”, sem relação alguma com o regime comunista.
Pawlikowski é responsável também por dirigir o filme – e ele o faz de maneira magnífica. Partindo da premissa de que a cronologia é central no plot – tanto do ponto de vista estático (o momento histórico) quanto dinâmico (a passagem do tempo) -, as elipses são elaboradas de maneira orgânica, impedindo que o espectador se canse. Nesse sentido, a esplendorosa trilha musical tem nítida função narrativa, pois conduz a trama e evolui de acordo com os estágios pelos quais Zula passa na vida e na carreira. As músicas são cantadas em lemko (um dialeto da região), polonês e francês, transitando entre o folk, a propaganda ideológica, jazz e até mesmo rock (a presença de “Rock around the clock”, de Bill Haley and his Comets, é grata surpresa, já que é de 1954) – sempre representando as fases da trajetória de Zula e mantendo a coerência com a época. Não raras vezes, a montagem usa as músicas para fazer raccords (o que ocorre inclusive no prólogo, quando há uma sequência com diversas canções, de planos conduzidos pelo mesmo fio condutor que é a musicalidade).
“Guerra Fria” é formidável no aspecto sonoro, mas também no visual. O figurino merece menção por ser bem fidedigno, porém é a fotografia que realmente encanta. A opção por uma razão de aspecto reduzida é uma evidente alusão ao audiovisual antigo, mas também tem função metafórica: Zula e Wiktor não têm para onde fugir da vigilância do governo, tampouco conseguem se afastar na imensidão do continente europeu. Lukasz Zal faz da fotografia um excelente recurso estético ao usá-la em preto e branco: novamente há uma referência histórica aliada a um significado simbólico, no sentido de que a atmosfera fria se impõe ao casal (o que é corroborado pela neve e pelos vestuários típicos de climas gélidos).Em síntese, “Guerra Fria” é um filme completo, pois reúne virtudes técnicas ao seu precioso texto. Chamar a produção de “obra inestimável” não é exagero: o retrato do amor, em sua forma mais pura, com tanta riqueza, merece infindáveis elogios.
*Filme assistido durante a cobertura da 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.