“GREEN BOOK – O GUIA” – Suficientemente operacional
Se for encarado como um manifesto conscientizador acerca do racismo, GREEN BOOK – O GUIA falha miseravelmente: inofensivo e por vezes óbvio, o filme é superficial – quando não contraditório – acerca da matéria. Enquanto road movie que retrata uma amizade se desenvolvendo, por outro lado, o longa é suficientemente operacional e se destaca positivamente apenas pela atuação da dupla principal.
Baseado em fatos reais, o filme apresenta Tony Lip, um homem truculento e racista que, desempregado, aceita trabalhar como motorista de Dr. Don Shirley, um fino pianista negro. Apesar de um início conturbado, evidentemente eles constroem um afeto recíproco durante a turnê para a qual Tony foi contratado.
Com experiência em comédias como “Debi & Lóide – dois idiotas em apuros”, “Quem vai ficar com Mary?” e “O amor é cego”, causa estranheza o envolvimento de Peter Farrelly em um filme com intenções nobres – sem dúvida, o auge da sua carreira. Entretanto, é perceptível sua dificuldade em fazer um filme mais complexo: por exemplo, a mise en scène é simplista e o trabalho de câmera, modesto. O edulcorante encerramento (em termos estéticos), regado à pieguice das músicas extradiegéticas do terceiro ato, apontam por um raciocínio limitado do ponto de vista técnico e sem criatividade no aspecto artístico.
O roteiro, escrito por Brian Hayes Currie, por Nick Vallelonga e pelo diretor, é um texto rudimentar em diversos aspectos. No que se refere ao racismo, são dois os vetores utilizados: de um lado, o protagonista Tony, que acredita que todos os negros são iguais e devem ter gostos iguais (exemplificativamente, para comida e música); de outro, a região à qual a dupla vai era reconhecidamente um antro de preconceito, o que enseja diversos episódios ofensivos para Don. No primeiro caso, há uma transformação em Tony – o que não é spoiler, mas desdobramento mais do que previsível da própria proposta do filme -, porém não fica claro se essa mudança representa um novo paradigma ou uma exceção (isto é, ele teria realmente abandonado o racismo ou seria Don um caso à parte para ele?). Quanto à geografia do preconceito, não apenas são mostradas atrocidades gritantes para os dias de hoje, como o texto jamais consegue ser sutil para apontar o racismo velado.
Para a Nova Iorque de 1962, um restaurante que não aceita clientes negros não era um absurdo (embora o roteiro enfatize, inteligentemente, o paradoxo da situação em si). Um contexto como esse não ataca o racismo do século XXI, pois o abismo entre as relações sociais das duas épocas é enorme. Dito de maneira mais simples, um insulto em 1962 não é o mesmo insulto em 2018 (ano de lançamento do filme). Na ótica hodierna, o racismo daquela época era tão eloquente que há uma maioria capaz de identificá-lo e censurá-lo. Se o objetivo de “Green book” era ajudar o público a perceber as nefastas atitudes que marginalizam os negros, muito mais efetivo seria exibir nuances mais discretas, ou seja, tirar a venda do espectador que é racista sem perceber (aquele que diz que “até tem” amigos negros). Em síntese, o filme se torna praticamente um registro histórico do que crescentemente se torna consenso de reprovação – mas não vai conscientizar alguém mais alienado. Portanto, desse ponto de vista, a película é quase inofensiva.
A dupla principal é de opostos que se atraem. O que sobra em um, falta no outro: Don é polido, culto, de poucas palavras e módico na alimentação; Tony é grosseiro, ignorante, tagarela e comilão. A distância entre eles é tão grande que o roteiro foi capaz de dar-lhes conformidade apenas em relação ao frango frito – em todos os demais aspectos, eles residem em polos distintos. Na medida em que Tony é construído como uma figura odiosa (inclusive do ponto de vista moral, com atitudes altamente condenáveis), Don é um arauto de educação beirando o tedioso. Posteriormente, Tony vai se tornando um ser simpático e agradável, apagando seus erros enquanto acerta (e praticamente sem sofrer, como se um aprendizado dessa magnitude fosse uma dádiva), enquanto Don abraça a condição de vítima e chega a se humilhar em alguns momentos (como quando o motorista recebe outra proposta de emprego ou quando deixa para ele decidir se vai tocar ou não).
Ironicamente, é essa mesma dupla principal que salva o longa. Embora o roteiro não consiga construir boas personagens, seus intérpretes são excelentes: um Viggo Mortensen fora de forma empresta carisma e um sotaque convincente a Tony; Mahershala Ali dá ainda mais imponência ao papel de Don, que ganha elegância pelo figurino, pelo porte do ator e, principalmente, pela sua linguagem corporal assertiva. Ali insiste em uma postura serena e séria quase sem sair desse padrão, consolidando a finesse do músico; Mortensen aposta em expressões faciais e manutenção da entonação vocal para expor a mudança sofrida pelo motorista. Cada um à sua maneira, os trabalhos são elogiáveis.
Enquanto produção, contudo, “Green book – o guia” não passa perto da excelência, embora também não seja ruim. Apesar das ressalvas, é capaz de criar metáforas interessantes, como a do olhar para frente (quando Don diz para Tony olhar para a estrada, para além do sentido literal, há uma simbologia quanto à própria evolução da personagem, que não deve recuar nessa evolução pessoal), além de prezar pelo aceitável (principalmente na motivação para Don querer Tony na função, explicação essencial para tornar crível a contratação deste). Provavelmente não se tornará clássico como “Conduzindo Miss Daisy”, uma de suas inspirações mais evidentes, mas não é facilmente esquecível como muitos outros produtos hollywoodianos.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.