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“GOLPE DE SORTE EM PARIS” – Um Woody Allen sombrio

Amor, sorte, dinheiro, arrependimentos e confiança: esses são alguns dos temas abordados em GOLPE DE SORTE EM PARIS, assuntos sobre os quais sempre vale a pena refletir. Seu realizador trata mais uma vez da vida – dele mesmo e de qualquer outra pessoa -, porém dessa vez com uma abordagem mais sombria do que de costume.

Fanny e Jean têm um casamento no qual ela entende ser tratada como “esposa-troféu”, o que, todavia, não a estimula a agir para mudar essa situação. Triste e resignada, seu estado de espírito (e seus atos) se modifica(m) quando ela reencontra Alain, um colega dos tempos de colégio, que era perdidamente apaixonado por ela. O reencontro ao acaso pode ser a sorte sorrindo para Fanny, mas a sorte nunca sorri para todos ao mesmo tempo.

(© O2 Play / Divulgação)

O filme é escrito e dirigido por Woody Allen, que adota a álea como fio condutor narrativo e temático. Ela está presente da primeira à última cena; tão onipresente na ficção quanto na convicção do roteiro. O conceito, porém, tem dois olhares bastante distintos, pois enquanto Alain é encantado com a sorte que é o simples fato de existir, contrariando as probabilidades, Jean afirma que “a sorte não existe, mas é criada”, declarando “fazer a própria sorte”. A temática serve também para Allen inserir a ironia na trama, característica marcante da sua filmografia.

O dinheiro é também abordado pelo longa, de maneira secundária, em especial para expor a diferença da condição financeira entre Jean e Alain. O primeiro trabalha na área das finanças e tem uma residência luxuosa; o segundo é, nesse quesito, o seu oposto. Esse abismo serve ainda simbolicamente para contrapor os dois, na medida em que aquele faz questão de exibir suas posses – tanto bens materiais quanto Fanny (tida por ele como um bem), quando não ambas -, ao passo que este não oculta a vida modesta. Por exemplo, Jean leva Fanny para refeições em estabelecimentos requintados, ao passo que os de Alain são mais simples, inclusive ocorrendo por vezes ao ar livre. Enquanto a casa daquele tem vários recintos amplos, a deste tem o teto inclinado, o que reduz o seu volume total.

Na iluminação e no design de produção são aproveitados tons dourados que traduzem o subtexto sobre dinheiro. A decoração do espaço de um dos eventos, o vestuário, a roupa de cama caramelo da casa de Alain: o dinheiro está em tudo, como se Jean e seu ostensivo poder aquisitivo permeasse a vida de Fanny, que, de outro vértice, afirma se envergonhar da ostentação. O figurino aproveita ainda em fazer de Fanny a representação do amor, já que ela tem quase sempre um elemento da cor vermelha em seu vestuário. Contudo, o roteiro não é muito claro ao desenvolver o amor que ela sente. Há clareza quanto à insatisfação com Jean, mas não quanto à empolgação com Alain, ficando a dúvida se o que ela gosta é a sensação nostálgica que ele traz, da que ela mesma qualifica como a “época mais feliz” da sua vida (e aqui o filme aborda um pouco o arrependimento), ou do próprio Alain.

Niels Schneider é bastante subaproveitado, pois Alain é uma personagem demasiadamente simples, a saber, de um jovem que parou no tempo de uma paixão platônica avassaladora. Lou de Laâge também não chega a um nível alto, pois Fanny serve mais como objeto de desejo do que como personagem. Por outro lado, Melvil Poupaud é excelente como Jean, o marido possessivo e desconfiado cujas ações podem ser imprevisíveis, quando necessário. Jean tem os melhores diálogos, aqueles que chamam a atenção por serem afiados no melhor estilo Woody Allen. Provocativas, as falas têm sempre um subtexto estimulante tanto para a trama quanto para fins de reflexão, de modo que Poupaud expõe as camadas da personagem que, muitas vezes, não deixa transparecer para as demais personagens o que realmente está pensando. Alain se torna desinteressante pela literalidade das suas palavras (em que pese à sua personalidade poética), Jean faz com que o espectador se deleite com o ar debochado (das falas e da atuação) face à ingenuidade de Fanny. Ainda, Valérie Lemercier interpreta uma personagem bastante perspicaz, cuja presença crescente na narrativa torna o longa mais instigante.

O primeiro longa de Woody Allen falado inteiro em francês mantém o que lhe é mais caro, como o humor baseado na ironia, a estética elegante (no som, bastante jazz; no visual, a expressão imagética das classes média e alta) e o roteiro inteligente. Dessa vez, porém, trata-se do seu filme mais sombrio na aparência: a fotografia fica azulada após determinado ponto na narrativa; em uma ligação comprometedora,  Jean é filmado na contraluz; há uso de montagem paralela para criar tensão e suspense em cenas-chave etc. Na essência, talvez a contundência da ironia final se sobressaia a essa obscuridade. Todavia, considerando que ele não pretende continuar dirigindo filmes, chama a atenção uma escolha melancólica para aquele que possivelmente será o seu último.