“GODZILLA” (1954) – O medo como motor da História
Como analisar um filme cujo subtexto central já foi dissecado em outras análises? Como permanecer relevante passados tantos anos e após o lançamento de tantas versões da mesma premissa? Muito já se falou sobre o paralelo entre os ataques nucleares sofridos pelo Japão na Segunda Guerra Mundial e a criatura gigante que devasta o país na narrativa cinematográfica. Porém, sempre conseguimos extrair outras ideias de um clássico como GODZILLA, referência até hoje do poder simbólico do cinema e das soluções criativas de um autor.
Embarcações são misteriosamente destruídas e tripulantes desaparecem tragicamente. Em meio às dúvidas e ao medo do que pode estar acontecendo, descobre-se que um enorme réptil mutante de 50 metros de altura está por trás dos ataques, o que o deixou resistente a diversas armas. Logo, os moradores precisam se proteger da destruição causada enquanto buscam uma estratégia para dar fim a essa ameaça.
A História se move a partir de um fluxo dialético entre passado, presente e futuro. Tal movimento, para o diretor Ishirô Honda, se dá atrelado ao medo. Inicialmente, o sentimento vem da incerteza quanto às causas do afundamento dos navios e da devastação de uma ilha. Seria um furacão? Seria a explosão de minas? Seria algo totalmente diferente? A falta de informações alimenta a apreensão dos familiares das vítimas e a paranoia das autoridades. Os acontecimentos se sucedem com um ritmo que cria um mistério para os personagens e um senso de tensão para os espectadores. No princípio, a narrativa tem a estrutura de uma trama de investigação que reúne pistas e formula teorias para explicar o que ocorria. Curiosamente, muitos filmes dentro desse universo já foram feitos até 2024 e dificilmente o público não saberia a origem da ameaça. Ainda assim, o suspense em torno da revelação do Godzilla tem um efeito importante para a elevação do pânico e se torna um contraponto irônico para o conhecimento do passado no presente.
Mesmo que o subtexto da bomba atômica já tenha sido explorado e seja um elemento dramatúrgico significativo (as menções aos ataques a Hiroshima e Nagasaki, aos sobreviventes desses eventos e ao surgimento do monstro em relação com aquela arma), o tema pode se manifestar de outras formas. O medo ganha uma materialidade forte quando um passado remoto e um presente absolutamente distinto se encontram inesperadamente. Godzilla é uma criatura jurássica que remonta aos primórdios do planeta Terra e é levada para o contexto da Guerra Fria. Cada época pode ser assustadora por si só, já que a mais antiga faz imaginar como seria para o ser humano lidar com criaturas de proporções monstruosas e a mais recente expõem a apreensão de viver em um mundo que poderia acabar a qualquer instante. A fusão das duas temporalidades potencializa o temor do que pode acontecer.
O passado e o presente continuam interligados como fonte de medo ou exercício de análise para um filme tão discutido. Realidades muito distantes são aproximadas e se chocam quando se precisa achar uma saída para enfrentar o monstro. A comunidade residentes em uma das ilhas utiliza suas tradições milenares para dar sentido à existência do Godzilla e realizar rituais contra ele. Os demais personagens depositam confiança nas forças policiais ou no conhecimento científico vigente. Crenças ancestrais e tecnologias contemporâneas parecem insuficientes para derrubar a criatura, ela própria uma combinação de períodos históricos distintos. Entre os ataques a um novo alvo, Ishirô Honda diminui o ritmo da narrativa e acompanha os esforços para restabelecer a ordem natural. Com isso, uma relação mais sadia entre passado e presente poderia se formar deixando de ser um fardo ou um perigo ressignificado.
Se pensarmos nos impactos que uma obra de 1954 pode causar décadas depois, é preciso ter cuidado com o olhar do presente voltado para representações do passado. Da mesma maneira que o medo pode contaminar o contato entre temporalidades diversas, o anacronismo pode prejudicar a experiência do público hoje que assiste a um projeto de ontem. Uma reação óbvia seria criticar os efeitos especiais que retratam o animal gigante, tratando-os como datados ou até precários. Entretanto, seria uma leitura que desconsidera a historicidade da técnica e as diferentes possibilidades semânticas de um recurso técnico. Os efeitos práticos para a constituição de Godzilla, os planos fechados em seu corpo e a trilha sonora ampliam o desespero destrutivo da encenação. E o uso de maquetes para compor o cenário urbano não soa artificial nem limitado esteticamente, pois, através do contraste, intensifica a vulnerabilidade de quem cruza o caminho de um ser tão imponente.
Ishirô Honda reconhece que a narrativa se volta explicitamente para um trecho mais distante da História, ou seja, o medo atômico no Japão no contexto do fim da Segunda Guerra Mundial. No entanto, o diretor também acena em muitos momentos para questões que se comunicam com o presente, inclusive com a contemporaneidade mais recente. Em um dos ataques de Godzilla, uma equipe de jornalismo deixa de fugir para poder narrar as ações da criatura o mais próximo possível dela, algo que remete a um debate contemporâneo sobre os limites da profissão. Após a devastação de uma das cidades atacadas, o sofrimento de um abrigo de vítimas e o canto melancólico de crianças como um pedido de paz lembra um filme de guerra, o que é particularmente expressivo nos tempos atuais de invasão russa à Ucrânia e de genocídio da população palestina. E a necessidade de conter o rastro de destruição deixado pelo Godzilla coloca em questão dilemas científicos profundos: a sede de conhecimento de compreender as características X o risco de deixar a população exposta a um grande perigo e a utilização de uma arma altamente destrutiva para matar o monstro X a preocupação ética de fornecer uma tecnologia perigosa para a existência humana no futuro.
“Godzilla” se sustenta até hoje como uma referência importante apesar dos vários outros filmes feitos sobre um animal gigante atacando certa cidade. A criatividade para trabalhar com as limitações técnicas de seu tempo e a junção de valores de diferentes épocas tornam a obra de ficção científica um símbolo dos impactos do medo no imaginário coletivo e na História. As análises sobre um filme não se esgotam embora as observações já tenham sido feitas em grande quantidade e, em sua maioria, sobre a questão da metáfora para a ameaça nuclear. Não se esgotam porque novas perspectivas podem aparecer a depender do espectador e do momento em que se assiste. É o caso de pensar o fluxo do processo histórico dentro de uma explosão sensorial de medo. Um sentimento que culmina na cena final que lamenta as mortes que ocorrem em cada elemento da encenação, independentemente de quem seja a vítima. A trilha sonora melancólica, a reação dos personagens e o ritmo cadenciado da decupagem reforçam que o maior medo é aquele que se sedimenta nos corpos, nas mentes e na História.
Um resultado de todos os filmes que já viu.