“GLASS ONION: UM MISTÉRIO KNIVES OUT” – Camadas aparentes de complexidade
Em 2019, Rian Johnson surpreendeu público e crítica com uma homenagem bem humorada às histórias de detetive ao estilo whodunnit. “Entre facas e segredos” (clique aqui para ler a nossa crítica) foi feito como uma grande brincadeira aos investigadores excêntricos, às tramas rocambolescas e às longas revelações expositivas. Três anos depois e disponível no catálogo da Netflix, a continuação GLASS ONION: UM MISTÉRIO KNIVES OUT é lançada preservando a combinação de comédia e mistério, o interesse pelo modo como um crime poderia ter sido cometido e a sátira política. Como diferencial, dessa vez, o diretor e roteirista brinca com a sensação de complexidade dos personagens, da investigação e da própria imagem cinematográfica.
Outro caso se apresenta ao detetive Benoit Blanc quando viaja para a luxuosa propriedade do bilionário Miles Bron em uma ilha grega. Miles convidou cinco amigos para sua reunião anual: o cientista Lionel Toussaint, a governadora Claire Debella, a modelo Birdie Jay (que leva junto sua assessora Peg), o influenciador digital Duke Cody (que leva junto sua namorada Whiskey) e a ex-sócia Cassandra Brand. Tudo é um enigma a ser solucionado, inclusive quem convidou Benoit e por qual motivo para o encontro. E durante a estadia na Grécia, os planos do anfitrião de criar um jogo para os convidados investigarem sua suposta morte se frustram quando um crime real é cometido.
Rian Johnson tem plena consciência da historicidade de seu filme de detetive, de seu olhar moldado pelo presente para um tipo de história muito antiga. Por isso, escancara imediatamente que a narrativa se ancora no período da pandemia do covid-19 com o uso de máscaras, isolamento social e reuniões virtuais. Porém, não se trata de uma referência apelativa em busca de reconhecimento do público, pois é um elemento que contribui para o desenvolvimento do protagonista. E, nesse sentido, o cineasta também sabe que o personagem é um dos grandes trunfos de sua obra. Daniel Craig se mostra ainda mais à vontade com Benoit Blanc, podendo demonstrar parte de sua vida doméstica e o quanto o lockdown forçado fez mal a um detetive que se alimenta da solução de enigmas (brincar com o jogo Among us não o satisfaz). Estando na ilha, o ator novamente articula o característico sotaque sulista e os trejeitos exagerados para dar a impressão de que o investigador seria medíocre até revelar, inesperadamente, sua capacidade dedutiva ímpar. É o caso, por exemplo, da sequência em que quebra as expectativas do bilionário para seu jogo tão bem “arquitetado”.
Se Benoit Blanc conserva sua autenticidade, o mesmo não se aplica aos demais personagens. O grupo de amigos de Miles Bron é fútil, superficial, vazio, preconceituoso e dependente do bilionário para ser bem-sucedido ou famoso nos tabloides sensacionalistas. Logo, os intérpretes de cada um deles cria sua própria caricatura daquelas figuras: Kathryn Hahn faz a governadora Claire Debella ser a definição de autoridade populista disposta a colocar sua carreira política em primeiro lugar através da preocupação irrestrita com a imagem pública; Leslie Odom Jr. encarna o cientista Lionel Toussaint como um sujeito fracassado em sua profissão que precisa ser bancado para levar adiante seus projetos profissionais; Dave Bautista interpreta Duke Cody, o nerd viciado em games e lives que não consegue esconder seu machismo e sua adoração por armas; e Kate Hudson vive a modelo Birdie Jay como uma mulher exibida nas festas e eventos dos quais participa, embora sempre dê uma declaração problemática no Twitter. Quem mais se diferencia é Janelle Monáe, que faz Cassandra Brand ter uma postura intimidadora mesmo em silêncio e depois ressignifica a personagem quando questões do passado vêm à tona.
Como fator agregador em torno de todos eles, está Miles Bron. O ricaço representa um tipo de pessoa que, não satisfeita em ter acesso a qualquer conforto material que o dinheiro pode fornecer, também dá vazão aos desejos mais extravagantes para dirimir o tédio decorrente de uma vida em que pode se ter tudo. Antes mesmo de sua aparição, a sequência em que Lionel comenta sobre as ideias absurdas que o amigo já teve para artigos ou serviços tecnológicos exemplifica as excentricidades perigosas ou ridículas do homem. A caracterização dele se amplia para outros níveis quando Edward Norton entra em cena, pois o ator se diverte com o quão patético o bilionário pode ser com um estilo de vida entre o bon-vivant, o investidor perspicaz, o coach motivacional e o intelectual incompreendido. Algumas cenas sintetizam suas contradições, como a conversa próxima a piscina na qual tenta legitimar uma ideia de meritocracia para seus amigos e justificar o nome do grupo como “disruptores” ainda que reproduzam o sistema capitalista. Além disso, o design de produção de um luxo injustificado da casa reforça o verniz chamativo de algo vazio por dentro que remete ao seu dono: estátuas de vidro, autorretratos, a escultura de uma cebola de vidro, um carro estacionado no telhado e a tela verdadeira da Monalisa.
Apesar de “Entre facas e segredos” e sua continuação possuírem flashbacks expressivos durante o trabalho investigativo, o mesmo recurso tem impactos diferentes. O primeiro filme estabelecia uma dimensão de comédia, trazendo à tona o passado para contrariar versões dos personagens. Já o segundo filme convida o espectador a fazer parte da investigação, mostrando cenas pretéritas de Benoit Blanc trabalhando como o detetive que é, inclusive ao lado de um parceiro. Como as clássicas histórias de Arthur Conan Doyle e Agatha Christie solidificaram na memória, as tramas seriam muito difíceis de desvendar até a revelação final do criminoso, quando tudo pareceria tão simples. Então, a sensação inicial era a de que o mistério seria complexo demais a ponto de o presente narrativo se basear na solução de um crime enquanto o passado se voltaria para outro crime. É verdade que, dessa vez, o flashback é controverso porque se, de um lado, uma investigação policial assume o centro da ação e o espectador mergulha na investigação coletando pistas e criando hipóteses, de outro lado, ele é tão longo e expositivo que parte do público pode desejar o retorno da narrativa ao tempo presente.
A encenação do filme acompanha a impressão de que os personagens e a investigação seriam intrincados. À medida que o flashback se desenrola, as mesmas sequências na ilha são revisitadas sob outros pontos de vista ou refilmadas de maneiras diversas. Rian Johnson parece brincar com o desejo do espectador de solucionar o mistério, deixando dúvidas se os fatos vistos até então teriam sido realmente compreendidos como deveriam – por sinal, muitos podem sentir vontade de voltar ao início da projeção para confirmar se cada detalhe encontrado posteriormente já estava inserido desde o princípio. Contudo, o diretor e roteirista pontua uma série de pistas no texto e na mise-en-scène do que precisa ser valorizado pelo olhar do espectador porque serão peças valiosas para montar o quebra-cabeça no futuro. A tela da Monalisa protegida por um sensor de movimento, a escultura de cebola de vidro, os copos de vidro para as bebidas, a arma na cintura de Duke e os ruídos de notificação no seu celular são as principais pistas que indicam um caminho para o esclarecimento do crime e, principalmente, a simplicidade da resolução.
“Glass onion: Um mistério Knives Out” não simplesmente repete a ideia governante do antecessor de satirizar as convenções de histórias de detetive enquanto elabora um mistério a ser descoberto sob um pano de fundo de crítica política à situação dos imigrantes latinos nos EUA. O segundo volume de uma futura trilogia pensa a aparência de complexidade em muitos níveis. Do ponto de vista dramático, a sátira política reside no esforço de evidenciar o vazio de grandes bilionários, como Elon Musk e Jeff Bezos, simbolizados por um Miles Bron idiota e burro que se agarra ao poder do dinheiro e a alguns palavras bonitas para parecerem mais do que realmente são. E Rian Johnson traduz esse princípio através de uma investigação que se complica mais do que precisaria se os elementos mais simples não fossem perdidos de vista, e de uma encenação que finge ser mais profunda do que, de fato, é por conta das intervenções visuais e narrativas feitas. Afinal, tal qual uma cebola de vidro que tem suas camadas descascadas e revela um interior vazio, os bilionários são apenas um instrumento de opressão, os crimes são uma sucessão de obviedades inimagináveis pela lógica e o filme é um brincadeira com o objetivo de divertir.
Um resultado de todos os filmes que já viu.