“GATILHO” – ASMR, apenas [44 MICSP]
Considerando que todas as pessoas são diferentes umas das outras, algumas têm maior fragilidade emocional do que outras. Em GATILHO, uma dupla está em polos opostos na questão, unindo-se por fatores cujo significado é muito distinto para cada um deles.
De um lado está Ksenia, uma moça solitária que grava vídeos de ASMR para causar sensações agradáveis a quem responde cognitivamente a tais estímulos. De outro, Phillip, um rapaz que vê os vídeos e a convida para se encontrarem pessoalmente. O que constroem juntos acaba tendo sentidos bem diferentes, talvez opostos, para a dupla.
Trata-se de um filme completamente sensorial. Seu plot é extremamente sucinto e o trabalho de Elena Chekmazova e Alexei Maslodudov é minimalista. No caso dela, existe uma mudança pequena, que só é perceptível em razão da neutralidade inicial. Vale dizer, no começo, ela se limita a sussurrar e executar as sessões com Phillip, porém depois ela acredita estar vivendo um relacionamento afetivo, criando vínculos com ele. O problema é que ele jamais enxerga dessa forma, insistindo na palavra “sessão” e rejeitando qualquer envolvimento afetivo (no máximo, sexual). Phillip é o mesmo do começo ao fim, ao passo que Ksenia abandona a serenidade inicial (quase uma passividade) para, por exemplo, falar em tom mais alto (o que o incomoda profundamente).
Não seria exagero afirmar que o que ela constrói está apenas em seu imaginário. Ele não fantasia viagens, não tem interesse em saber mais sobre ela; o que ele quer é apenas praticar atividades relativas à ASMR, nada mais. Ironicamente, Ksenia também não é exatamente a figura que Phillip enxergava romanticamente ao assistir aos vídeos, pois ela, na empolgação, é capaz de falar mais alto que um sussurro. Os vídeos de ASMR são a válvula de escape que ela encontrou para lidar com os próprios traumas – contudo, o roteiro não se esforça em aclarar o backstory da personagem, mencionando os traumas sem a verticalidade minimamente desejável.
O texto deixa a desejar, porém a direção de Pavel Ganin revela maior esmero. Para transmitir uma sensação de estranhamento, há músicas destinadas a esse fim, destacando-se, todavia, a mixagem de som, que é capaz de colocar ruídos diegéticos com volume muito maior que o da voz humana (isto é, o corte de cabelo está em volume maior que os sussurros de Ksenia). Por exemplo, um recipiente entrando no forno, sendo arrastado pela grelha, parece o som de um trem; ao passo que um show parece bem menos barulhento do que seria em outros filmes. O trabalho da mixagem é justamente o de destacar os ruídos ligados à ASMR.
No visual, embora os dois tenham um figurino escuro e sóbrio, o design de produção os distingue nos locais onde moram: o apartamento de Phillip tem apenas cores claras em tons de branco e cinza, sem estampas; diversamente, o apartamento de Ksenia tem papel de parede de flores, em tonalidades cor de pêssego.
“Gatilho” é um filme um pouco vago, do qual se extrai, no máximo, a dificuldade de se relacionar com quem não quer nutrir um relacionamento. A despeito das tentativas de Ksenia, Phillip não a trata calorosamente porque sua natureza é apática (basta ver a frieza com que trata a colega de trabalho, claramente interessada nele) e a relação formada, na ótica dele, é quase profissional, de prestação de serviços. O que não a impede de continuar tentando – assim como o público tenta absorver algo proveitoso de uma obra que não oferece quase nada para ser aproveitado.
* Filme assistido durante a cobertura da 44ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.