“FURIOSA: UMA SAGA MAD MAX” – Ira alimentada pelo luto
Poucos cineastas são capazes de manter o nível de uma obra-prima através de um prequel. Quando comparado a “Mad Max: Estrada da Fúria” (2015), FURIOSA: UMA SAGA MAD MAX não tem o fator “novidade”, mas mantém a qualidade técnica, amplia o universo criado e encanta com a genialidade de seu criador, George Miller.
Ainda criança, Furiosa é sequestrada do Vale Verde de Muitas Mães por um integrante do grupo de Dementus, o comandante de um grupo de motoqueiros. O sequestro é apenas o começo de sua jornada pelo retorno ao lar, que contará com outros inimigos, mas também com aliados.
O roteiro do longa, escrito pelo próprio diretor, George Miller, e por Nick Lathouris, transforma uma limitação em fonte: o fato de ser uma história pregressa restringe o encaminhamento da narrativa (a protagonista não vai morrer, por exemplo), mas esse mesmo fato serve para explicar elementos do filme de 2015 que não foram explicados. É verdade que as respostas a perguntas como “de que modo Furiosa perdeu o braço?” e “como ela ganhou a confiança de Immortan Joe?” não são indispensáveis para o aproveitamento de “Estrada da Fúria”, porém “Furiosa” enriquece a experiência propiciada pelo já rico universo criado por Miller em 1979 com “Mad Max”, que se torna um deleite ainda maior.
Leituras rasas da produção de 2015 entendem que se trata de um filme com roteiro singelo. Não é esse, contudo, o caso: tanto naquela oportunidade quanto no prequel, o encaminhamento da narrativa não ostenta a obviedade linear da maioria dos blockbusters (há vaivéns, desencontros e reencontros), revelando uma visão pessimista da humanidade, que está, conforme expressado, “fora de controle”. Existe espaço para a “abundância”, porém ele é minoritário, o que reforça esse olhar. Miller faz uma crítica geral a um egoísmo possivelmente inato das pessoas, além, é claro, ao mau uso dos recursos naturais (por exemplo, no modo como Dementus não consegue gerir a Vila Gasolina). O ódio é indelével; as guerras, inafastáveis. A História, entendida ciclicamente, cumpre papel especial, com referências evidentes à Antiguidade, como no veículo de Dementus, sua estratégia à Cavalo de Tróia e o “pretor” Jack. No universo Mad Max, apenas quem tem utilidade tem o seu valor reconhecido, o darwinismo impera de maneira radical e a empatia e a solidariedade são valores que praticamente inexistem.
A mitologia desse universo é mantida e expandida, com contribuições que o solidificam. O exótico se faz presente em larga medida seja no que já existia – em especial quanto a Immortan Joe (agora interpretado por Lachy Hulme) e seus seguidores (como seus filhos e os garotos de guerra) -, seja no que é novo – principalmente o grupo de Dementus (o homem sem olho, o idoso tatuado etc.). Os vilões, aliás, são bem diferentes, o que se denota pelo modo de vida, dado que o primeiro estabelece “sedes” para o seu comando e exerce controle de recursos, ao passo que o segundo tem uma vida nômade e de escassez. Além do exótico, mais uma vez o erótico também se verifica na obra, como nos homens descamisados, o harém de Immortan Joe, os cintos de castidade e a pintura de nudez.
No papel do novo vilão está um irreconhecível Chris Hemsworth: distante do perfil heroico e de galã da personagem que o tornou conhecido (Thor), o ator usa uma barba grisalha (o que corrobora o alegado backstory sofrido) e uma protuberante prótese no nariz para diferenciação, além de dentes amarelados e tortos e do seu natural sotaque australiano. Beneficiado pela verborragia de Dementus, seu trabalho é muito bom, inclusive melhor da Furiosa (adulta) de Anya Taylor-Joy, que, contudo, não vai mal ao expressar emoções com pouquíssimas palavras.
A estética do filme, mais uma vez, é simplesmente bárbara. Visualmente, as caracterizações suprem o gap entre “Estrada da Fúria” e a trilogia original (já que Miller afirmou haver uma continuidade, não um reboot) na medida em que Dementus e seu grupo formam uma gangue de motoqueiros que passa a conhecer o modo de vida da multidão comandada por Immortan Joe (o que mostra que “Furiosa” exerce bem um papel de transição). Parece haver mais CGI do que na produção de 2015, contudo os efeitos práticos ainda impressionam. Em inúmeros tons de âmbar (inclusive âmbar dentro do âmbar, como no fogo dentro de uma tempestade de areia), a fotografia se torna estonteante (o azul noturno é menos marcante). A aridez do deserto australiano é quase palpável; sua areia parece interminável, o que é salientado pelo eventual uso de desfoque entre o fim do solo e o começo do céu (o contorno do horizonte, por vezes, não é claro) e do “efeito Vertigo”. No som, a percussão acelerada eleva a adrenalina – a primeira cena em que Jack (Tom Burke) dirige é de tirar o fôlego -, mas o diretor conhece o poder do silêncio, como quando Furiosa fica sozinha na estrada, em que se ouve sua respiração ofegante, seu pisar no solo e o contato da roupa.
George Miller não abusa das ferramentas que dão robustez à sua obra. O slow motion, por exemplo, é reservado ao instante decisivo. O filme e a personagem que dá nome a ele são igualmente implacáveis: o cenário é brutalmente apocalíptico, o luto é questão de tempo, assim como a ira e, portanto, a vingança (em uma espiral aparentemente sem fim). Foi assim em Roma, é assim no universo Mad Max. Foi assim com Max, é assim com Furiosa.
P.S.: “Furiosa” é um filme formidável. Já “Mad Max: Estrada da Fúria” é hors concours.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.