“FRANKLIN, A HISTÓRIA DE UM BILHETE” – Dinheiro sujo [46 MICSP]
Embora seja um bilhete de loteria a mola propulsora do plot de FRANKLIN, A HISTÓRIA DE UM BILHETE, é ainda mais interessante perceber no longa a presença reiterada de uma nota de dinheiro manchada. Sua mancha é resultado de uma cena no início, mas seu retorno é uma maneira simbólica de denunciar a sujeira que cerca as personagens.
Depois de cumprir pena, Correa, um ex-boxeador, quer se afastar da organização criminosa da qual fazia parte. Para isso, seu plano é conseguir dinheiro e fugir com Rosa, sua namorada e prostituta que também trabalha para Bernal, o chefe da organização. Além das dificuldades em angariar o dinheiro (o que faz apostando na loteria) e enganar Bernal, ele precisa sobreviver a uma vingança pessoal.
A expressão “lavagem de dinheiro” se refere não à sujeira literal de uma cédula, mas à sujeira quanto à licitude. Isto é, trata-se da prática de transformar o dinheiro oriundo de renda ilícita (sujo) em dinheiro aparentemente lícito (limpo). O que o diretor Lucas Vivo García Lagos faz é, de maneira inteligente, empregar a expressão nos dois sentidos. Situação semelhante ocorre com um machado que, além de aparecer em uma cena tragicômica, retorna adiante em uma referência a “O iluminado” (clique aqui para ler a nossa crítica), o que mostra que o roteiro de García Lagos, escrito com Marcelo Slavich e Walter Slavich, não desperdiça elementos colocados em cena.
A economicidade da produção tem seu lado positivo, mas também tem defeitos. O principal deles se refere à inabilidade em construir personagens, ou, de maneira mais precisa, em dar a elas personalidade. Correa (Germán Palacios), por exemplo, é apresentado em três momentos de vida, porém a conexão entre eles é feita em elipses que, na verdade, constituem lacunas. No primeiro momento, ele é um lutador submetido às ordens de Bernal (Daniel Aráoz), mas insubordinado e em certa medida desafiador. No segundo, cinco anos após, ele é um funcionário obediente no grupo criminoso comandado por Bernal. No terceiro, três anos depois, é uma pessoa aparentemente religiosa (não se sabe se a religiosidade é fator novo e o que o conduziu a esse perfil) e disposta a não mais trabalhar para Bernal. O que ocorreu nesses três anos para ele não mais querer pertencer à organização criminosa? É também neste período que se iniciou o romance com Rosa (Sofía Gala Castiglione), em flagrante ofensa ao preceito básico “show, not tell”. Assim, torna-se difícil torcer para que Correa tenha êxito na vida longe do crime e que seja feliz junto a Rosa, pois não se sabe a sua motivação nem como o namoro aconteceu.
Para compensar essas lacunas, o texto faz um bom trabalho na convergência entre as personagens e seus arcos narrativos. Rosa deixa de ser um ativo para a organização criminosa graças à sua conduta com o comissário; Bernal quer o último trabalho de Correa para que ele sofra ao deixar o grupo; Yermo (Joaquín Ferreira) precisa praticar extorsão mediante sequestro para honrar o compromisso assumido junto a Correa. Existe, portanto, um elo de práticas à margem da lei unindo as personagens em seus diferentes interesses, deixando claro que nenhuma delas é confiável, muito menos digna de admiração. Uma vítima pode se tornar ofensora, um apadrinhamento pode sofrer um ocaso e o que parece ter sido atingido pode ser uma miragem.
Essa confluência de fatores combina com a mão pesada da direção de García Lagos, que claramente gosta de planos longos (como nos minutos iniciais) e utiliza bem planos-detalhe. Nesse último caso, a utilização é precisa tanto para momentos de afabilidade (quando se inicia o encontro táctil entre Correa e Rosa no carro) quanto para cenas de tensão (quando Rosa se esconde enquanto Correa e Bernal conversam no banheiro). Imageticamente, “Franklin, a história de um bilhete” é violento e não se contém nos jatos de sangue, o que combina com a sua proposta. Até mesmo seu ritmo frenético é compatível com a proposta, o problema é que isso torna as personagens rasas e enfraquece a narrativa em si. Para se destacar, teria sido melhor explorar mais os vaivéns da nota de dinheiro manchada, uma metáfora simples, mas eficaz, sobre a podridão do mundo da criminalidade.
* Filme assistido durante a cobertura da 46ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.