“FRAGMENTADO” – O renascimento de M. Night Shyamalan
*Clique aqui para ler a crítica de “Corpo fechado“.
Falar em M. Night Shyamalan é esperar reações díspares dependendo do momento de sua carreira. No início, houve elogios (até exacerbados) que o comparavam a Alfred Hitchcock graças a “O sexto sentido” e “Corpo fechado“; em seguida, foi execrado como uma farsa (também exageradamente) graças a “Fim dos tempos“, “A dama na água“, “O último mestre do ar” e “Depois da Terra“; atualmente, é novamente saudado como se estivesse de volta à boa fase. FRAGMENTADO tem grande responsabilidade para a fase mais recente do cineasta.
O filme traz Kevin Wendell como um homem que consegue alternar entre vinte e três personalidades distintas. Após sequestrar três jovens e as aprisionar em um cativeiro, elas precisam encontrar uma rota de fuga antes que a vigésima quarta personalidade se materialize.
Shyamalan é hábil em construir um universo próprio onde se passa sua trama, utilizando o Transtorno Dissociativo de Identidade (TDI) como ponto de partida para desenvolver a temática em que demonstra maior familiaridade: o homem sendo impelido a atravessar os limites da realidade e do que o define enquanto espécie, geralmente através da fantasia. O roteiro utiliza recursos orgânicos à narrativa para apresentar o universo fílmico, como as sessões entre o personagem e a psicóloga Karen Fletcher e uma cena em que ela dá uma palestra sobre a condição psicológica de seu paciente.
O roteiro trata as múltiplas personalidades e seus impactos sobre a sociedade da mesma forma como é feito pela psicóloga, revelando uma perspectiva interessante para a atmosfera pretendida pelo cineasta: as características psicológicas do protagonista não são, necessariamente, anormais ou pejorativas, mas sim uma condição extraordinária. A partir daí, o texto assume o estilo de graphic novel e aborda questões relativas a um poder sobre-humano através da roupagem de história de super-herói. Essa abordagem oferece caminhos dramáticos instigantes para a condução de uma trama composta por traumas, sentimento de autoproteção e desvios psicológicos; assim como permite a James McAvoy compor um personagem sofrido, misterioso, inconstante e imprevisível.
Por sinal, James McAvoy entrega a melhor performance de sua carreira ao interpretar um personagem com diversas personalidades diferentes dentro de si. Sua condição é evidenciada a cada mínimo detalhe físico exibido: o tom de voz, a inclinação da cabeça, a expressão em seus olhos, a postura corporal como um todo; tais nuances são apresentadas, principalmente, em uma sequência sem cortes com a câmera posicionada no ator, fazendo com que ele precise transitar por cada identidade rapidamente – isso acontece em uma sessão, na qual a psicóloga se mostra cética com relação à particularidade de seu paciente. Além dele, as duas atrizes com maior destaque também estão bem: Betty Buckley, que vive a doutora Karen Fletcher, transmite a inteligência e o profissionalismo de seu ofício, bem como a preocupação genuína que nutre por Kevin; e Anya Taylor-Joy, que interpreta a refém Casey Cooke, evoca a vulnerabilidade da jovem em meio a uma situação de risco extremo sem cometer ações estúpidas, assim como um deslocamento social decorrente da falta de vínculos efetivos através do olhar perdido, que parece não estar captando o que acontece ao seu redor.
As informações sobre as várias identidades são entregues calmamente, através de alguns detalhes sutis, como os diferentes estilos usados pelo cineasta: uma composição simétrica para representar a personalidade metódica e organizada de Dennis; planos com cores um pouco mais variadas para dar vida a Patricia; um enquadramento plongée (de cima para baixo) para demonstrar a pequenez da personalidade infantil de Hedwig; e o contreplongée (de baixo para cima) para destacar a força e a imponência da personalidade mais ameaçadora entre todas. Outro acerto do diretor é construir momentos tensos através da insinuação do que acontece fora de campo, aproveitando-se do suspense criado a partir do adiamento de uma revelação; e de movimentos de câmera fluidos sem cortes abruptos, como os travellings (movimento lateral da câmera) feitos com tracking shots (câmera se movimentando, presa a um carrinho, para seguir um personagem).
A atmosfera de suspense também é estabelecida pelo design de produção, capaz de construir uma forte claustrofobia. O ambiente em que as jovens estão presas, os corredores e uma área de manutenção são incomodamente pequenos e apertados (cenários onde o filme se passa, predominantemente). As locações ainda fornecem metáforas interessantes para retratar a interligação das várias identidades de Kevin (os canos da tubulação de gás, as escadas em caracol do consultório da psicóloga…) e para simbolizar o controle de uma personalidade sobre as demais (a aparição de fontes de luz nas cenas em que uma identidade se projeta sobre outra).
Existem alguns equívocos em tentativas de humor desnecessárias e em diálogos inverossímeis (a infantilização exagerada da personalidade intitulada Hedwig como alívio cômico, por vezes; e a suspeita de uma das jovens sequestradas de que poderiam estar presas para servirem de comida para um cão), porém nada que comprometa o sucesso geral do filme. Nas mãos de M. Night Shyamalan, “Fragmentado” é um suspense tenso, de ótimas atuações e que ainda evoca o início talentoso de sua filmografia; essa evocação, inclusive, é tão presente que também está dentro da narrativa para agradar aos fãs do cineasta e roteirista.
Um resultado de todos os filmes que já viu.