“FOGO FÁTUO”- Fisicalidade que transborda em suspensão
A linguagem dos musicais oferece bastante liberdade para a condução de narrativas cinematográficas. Das coreografias à exposição autorizada pelas letras das composições, a manutenção de um elo fantástico parece sempre se preservar, oferecendo novas formas de se observar questões da realidade. É nesse último eixo que temáticas sociais tem encontrado cada vez mais espaço dentro do gênero, articulando novas relações com as simbologias e estratégias do audiovisual. Partindo de relações entre o homem e a natureza, seja a compartilhada ou com a sua própria, é daí que surgem FANTASMA NEON e FOGO FÁTUO, curta e longa-metragem que estão sendo exibidos juntos nos cinemas de São Paulo.
O primeiro acompanha a rotina de um entregador de comida em meio à invisibilidade social. Navegando pelas ruas do Rio de Janeiro, ele reflete sobre as condições de sua existência enquanto articula números de dança – ainda que surgidos da força narrativa do filme, e não reconhecidos pelas personagens – em meio aos colegas de trabalho. Juntos, questionam se existiria alguma outra maneira de serem vistos senão a fabulação. Apesar das boas ideias, entretanto, a pouca duração cabula um argumento que parece não conseguir ir além da proposição.
O segundo, por sua vez, conta a história do príncipe Alfredo, um português moribundo que relembra o seu passado em seus últimos suspiros de vida. Ele revisita o seu treinamento como um jovem bombeiro, durante o qual descobriu a sua vocação e um romance proibido com o colega e estudante de sociologia, Afonso. Juntos, os dois alimentam o seu desejo às escondidas e batalham pela preservação ambiental.
Dirigido por João Pedro Rodrigues, é interessante a associação que o filme estabelece entre a fisicalidade das árvores e a sexualidade do casal principal, igualmente acometidos por uma força queimando dentro de si. Desde a primeira canção, que se repete no futuro para engatilhar a trama como um todo, tal paralelo se estabelece, ungido como a unidade do longa.
É interessante como isso reconhece a complexidade por detrás das autodescobertas de Alfredo. Mais do que em busca de um propósito, ou mesmo de sua própria identidade, Rodrigues admite a força da natureza como uma indagação interna, não restrita à fauna e flora ali posta sob ameaça.
A ideia é que o jovem princípe, cuja perdição no olhar é bem incorporada por Mauro Costa, esteja buscando uma conexão com a própria natureza, perseguido por chamas que queimam em seu incosciente.
Apesar da leitura abstrata, convence a forma como o projeto admite a sua própria iconosclatia, apostando bastante no grau físico de suas imagens. Seja no registro do prazer sexual, emparelhados pela montagem com os longos troncos que se estendem pela floresta, na movimentação dos corpos através das coreografias – e cujo planejamento em planos atenta essencialmente para os atores a frente de câmeras estáticas -, não existe receio em explorar uma simbologia mais crua.
É nessa abordagem híbrida entre o abstrato e o literal que se encontra uma organicidade em se abordar o discurso de classe aqui também presente, oxigenando um cinema de conscientização que tem insistido em priorizar a mensagem em detrimento da linguagem que opera a sua forma de apresentação. Por essas e outras, nem mesmo a pequenez de “Fogo fátuo” é capaz de apagar a chama de seu honesto espírito de fantasia social, erguido pela originalidade em receber de braços abertos o potencial porta-voz do cinema musical.