“FILHOS DA GUERRA” – Atuar para sobreviver
* Filme assistido na plataforma da Supo Mungam Films (clique aqui para acessar a página da Supo Mungam Plus).
A profissão de ator não é fácil quando se quer convencer. Com o sonho pueril de ser um Clark Gable, o protagonista de FILHOS DA GUERRA é obrigado a pisar nas próprias tradições e encarnar uma personagem que lhe garante a sobrevivência. A tarefa é mais que difícil, é dolorosa, mostrando que mentir e fingir por falta de opção é desesperador.
Ainda na adolescência, Salomon Perel é obrigado a deixar seus pais e fugir da Polônia invadida por Hitler. Após um período na Rússia e encontrado pelos soldados nazistas, Salek cria uma nova identidade para sobreviver. “Sally” passa a ser Josef Peters, abandonando de vez suas origens judaicas, porém correndo um enorme risco, se descoberto – o que pode ocorrer a qualquer momento.
É difícil encolher uma narrativa tão longa, sendo interessante a forma como Agnieszka Holland encolhe a biografia de Solomon Perel em menos de cento e vinte minutos. O essencial se faz presente, como a cena da circuncisão do recém-nascido Sally, mantendo-se o dinamismo da trama sem perder a coerência. É bastante claro o crescendo do roteiro, o que dá coerência até mesmo à vida itinerante do protagonista.
O fato de se tratar de uma obra baseada em fatos atenua consideravelmente alguns eventos inacreditáveis na vida de Sally. Ele conta com a sorte em diversas ocasiões, na verdade até mesmo sua sobrevivência decorre um pouco da sorte (ao se separar do irmão, por exemplo). Os momentos de alegria são escassos e fatalmente seguidos de momentos dramáticos. “Filhos da guerra” é um híbrido de três gêneros: dramático, guerra e biográfico. A parte dramática é a que prepondera, com cenas competentes do lado bélico e um panorama eficaz no aspecto biográfico.
Ocorre que o drama do filme nem sempre é o óbvio ou o visível. A cena em que Sally sai de casa, por exemplo, é exceção, pois normalmente ele não é submetido a um sofrimento explícito e efêmero. Sua dor é de um drama interno, de modo que o drama visível é maior por personagens que o cercam (como na cena do homem armênio). A violência gráfica também se faz presente, mas novamente é mais intensa com personagens periféricas. Por vezes, o longa opta por subverter o drama, como quando as crianças debatem a ideia da religião como “ópio das massas”, que se encerra com “o comunismo é lindo”.
O pavor é elemento transitório na trama, pois o que é perene é a tensão de Sally, com receio de ser descoberto – afinal, ele não pode sequer urinar ou se banhar em paz. O antissemitismo é abordado em esferas diversas. Em sua trajetória, Sally encontra um discurso retratando judeus de maneira animalesca – ou melhor, uma lavagem cerebral em verniz (pseudo)científico -, não apenas o ódio imotivado. O herói não consegue saber em quem pode confiar e precisa desconfiar de todos mesmo se garantindo (em tese, é claro) com a nova identidade. O envolvimento dos alemães era de diversos graus: fanatismo antissemita (papel de uma jovem Julie Delpy), torcida pela causa (o menino que chora após receber notícias de Stalingrado) e mesmo solidariedade escondida (os que não deduraram Sally ao descobrir que é judeu.
Ignorando desvios desnecessários (a peça com Hitler e Stalin), o longa tem cenas tecnicamente exuberantes, como a que Sally tem sua anatomia analisada (o close em seu rosto amplia a tensão) e a que ele jura lealdade a uma estátua (cujo tamanho torna imagética a opressão face ao protagonista). Os cenários são muitas vezes simbólicos (como o cemitério de judeus) e a trilha musical tem razoável personalidade. Janelas surgem como metáfora da própria condição de Sally: quando o vidro está embaçado, ele aproveita para desenhar uma estrela de Davi, oportunidade singular para clandestinamente assumir suas origens, mas também é o vidro embaçado que enseja a visão, por uma fresta, do sofrimento pelo qual deixou de passar.
Adorável, todos acabam gostando de Sally. As pessoas que ele ama saem da sua vida, a maioria tem passagem efêmera, com ou sem ligação de afeto – no primeiro caso está Robert, no segundo, a mulher do trem, em ambos, o subtexto sexual é deveras inusitado. O texto coloca o protagonista enfrentando uma dúvida que para ele acaba sendo crucial – o que diferencia os “arianos puros” dos judeus? -, momento a partir do qual pisar nas próprias tradições (fazer sinal da cruz, comer carne de porco etc.) se torna fulminante. Mesmo que Marco Hofschneider deixe a desejar no papel, não apresentando uma fração da dramaticidade desejável, “Filhos da guerra” consegue ser tocante. Por outro lado, o desafio de interpretar um ator da vida real como Solomon Perel seria hercúleo para qualquer um – poucos tiveram um desempenho eficaz como ele e conseguiram sobreviver para contar a história.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.