FILHOS DA DINAMARCA – Muitas vítimas [43 MICSP]
Estamos em guerra. Precisamos devolver a pátria para seus cidadãos, aqueles que a merecem, não os outros. Sim, somos nós contra eles. Aceitamos atrocidades em nome da compaixão. Eles não devem ser tratados com agrado, mas como os bandidos que são. Precisamos de reformas estruturais. Não se trata de ideias polêmicas, mas necessárias.
Eles se denominam filhos da pátria, mas são a imundície da nação. Chega de ficarmos calados, chega de suportar a violência, de sermos tratados como gado. Algo precisa ser feito. Não seremos governados por idiotas. É hora de agir.
O primeiro parágrafo acima reflete o discurso ultranacionalista e xenofóbico, válido para diversas nações – e, em visão macro, para manifestações desagregadoras contra minorias sociais. O segundo se refere às ideias diametralmente opostas, igualmente radicais, de uso da violência para adquirir respeito. São os extremos de sinais trocados (nenhum deles refletindo o pensamento do autor do presente texto, que fique claro). FILHOS DA DINAMARCA retrata o perigo do extremismo na política, fazendo um recorte relativo à imigração. Interpretando a obra de maneira mais ampla, porém, a denúncia é sobre qualquer discurso político radical e unilateral, algo que não ocorre apenas no país europeu.
O filme se passa na Dinamarca, em um futuro próximo, em um período pré-eleição e um ano após um grande ataque terrorista em Copenhague. Com a polarização do país na questão étnica, o político Martin Nordahl é o favorito para se tornar Primeiro-Ministro, graças ao seu discurso radicalmente contrário aos imigrantes. De outro lado, o jovem Zakaria ingressa em um grupo que se revolta contra o Movimento Nacional Anti-imigração. Os dois lados estão prestes a um embate que promete muitas vítimas.
O roteiro, escrito por Ulaa Salim, que também dirige a película, tem uma estrutura que não é original, mas revela ousadia sempre que usada (genericamente, para evitar spoilers, toma um encaminhamento inesperado no que se refere ao protagonismo). A narrativa tem uma crescente palpável, com um clímax dramático simplesmente desolador – a opção da direção pelo silêncio é acertada. O desfecho, porém, é um pouco questionável do ponto de vista da mensagem a ser transmitida.
Há três prólogos. O primeiro introduz o público à diegese futurística (e é surpreendente); o segundo, a uma das personagens principais; o terceiro tem viés conceitual com uma excelente escolha como tema musical (extratos de “Lacrimosa”, de Mozart), que dá um tom épico à produção. Há uma grandiloquência nas cenas iniciais, talvez pouco compatível com o que segue, mas certamente impactante.
O script conta com três personagens principais. Vivido por Mohammed Ismail Mohammed, Zakaria é um jovem que, quiçá em razão da ausência de uma figura paterna, procura uma orientação fora de casa. Infelizmente, ele encontra ativistas radicais, deixando de lado a sua família. O protecionismo materno revela o quão influenciável ele é, justificando também o encaminhamento dado ao seu arco narrativo. Zaki Youssef faz um trabalho formidável como Ali, certamente a personagem mais complexa da trama e mais dependente de transformações psicológicas (dentre outros aspectos). Por exemplo, no segundo ato, o desconforto transmitido no olhar é notório. Ali é fundamental na narrativa, acompanhando seu ritmo e suas nuances – aliás, a fotografia faz o mesmo, com muito uso da cor vermelha e tons escuros. Rasmus Bjerg é Martin Nordahl, aparentemente unidimensional, quase um vilão, mas facilmente reconhecível na política mundial (portanto, verossímil). Nordahl é aquele político que defende o direito de dizer o que pensa, ainda que isso redunde em manifestações de ódio e discriminação. Isto é, ele representa quem acha que a liberdade de expressão é um cheque em branco para destilar ofensas a terceiros. Ele expressamente desdenha de um dos sentimentos mais nobres da humanidade, a compaixão.
É fácil perceber que a trama não é maniqueísta. Ao revés, ela conta com sentimentos complexos, já que as personagens são multifacetadas. Zakaria, por exemplo, não é a encarnação do terrorista manipulado por um líder inescrupuloso, mas um jovem vulnerável e carinhoso com a família. Não existem mocinhos nem vilões (ao menos em um exame vertical), mas pessoas realistas com emoções críveis – o uso de closes pela direção enaltece o trabalho do elenco. Na direção, o emprego de planos longos e fechados cria uma atmosfera intimista, pois a película é, antes de tudo, sobre pessoas. Mais precisamente, pessoas que representam arquétipos censuráveis. O filme tem cenas fortes, mas não apela para a violência gratuita. Uma arma apontada pode ser mais significativa que um assassinato efetivo.
“Filhos da Dinamarca” é um filme forte, primoroso, pujante e pulsante. Uma produção irrepreensível na perspectiva técnica e oportuna no aspecto ideológico. Como mencionado, a luta política segregacionista não tem heróis nem malfeitores, essa seria uma visão simplista, distante do que o filme propõe. Mas o que ele diz, com eloquência e vigor sem igual, é uma certeza: há muitas vítimas.
* Filme assistido durante a cobertura da 43ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.