“FERRARI” – Sem combustível para próximos filmes [47 MICSP]
Considerando que os efeitos visuais majoritariamente deixam a desejar, o roteiro não consegue trabalhar o conflito principal e as personagens não são cativantes, pouco resta em FERRARI para torná-lo um bom filme. Mesmo que o longa seja dirigido por um cineasta qualificado, o que lhe sobra – e não há palavra mais adequada – é, no máximo, testosterona suplementada por gasolina, o que não significa nada para um projeto ambicioso como esse.
O ano é 1957 e o ex-piloto Enzo Ferrari está em uma situação pessoal e profissional difícil. Em casa, a esposa parece querer vê-lo morto; no trabalho, sua empresa está à beira da falência. A única solução parece ser a Mille Miglia, corrida que, se vencida, pode se tornar um divisor de águas para a Scuderia.
Causa alguma surpresa que o mesmo diretor de “O último dos moicanos” e “Fogo contra fogo”, dentre outros ótimos filmes, seja o responsável por uma obra tão ruim quanto “Ferrari”. Trata-se, certamente, do pior trabalho da filmografia de Michael Mann, mesmo considerando o fraco “Hacker”. Há dois elementos fundamentais na nova produção: os carros e as pessoas. Para aqueles, Mann se limita ao básico; para estas, nem isso é feito. O poder dos carros está presente, primeiro, nas corridas, com montagem acelerada e quase um ato inteiro dedicado a uma corrida. Com establishing shots, os planos variam entre próximos aos veículos e distantes deles, porém é perdida a oportunidade de exibir mais dos cenários onde os automóveis se deslocam – o que, todavia, é explicado pelo visual vergonhosamente falso da película em alguns momentos. Quando o enquadramento é próximo do carro, a mixagem aumenta os repetitivos ruídos de motor; quando distante, prevalece a trilha extradiegética. Ou seja, nada criativo.
Existem, é verdade, relances em que a veneração ao universo do automobilismo se faz presente, como na alegria da criança ao comer aquela meia banana. Entretanto, é difícil levar a sério essa parte do longa quando ela é um fim em si mesmo. Veja-se, por exemplo, a personagem Alfonso de Portago, vivido por Gabriel Leone. Trata-se meramente do jovem estiloso (cabelo comprido, sempre fumando), audacioso (se apresenta sem contexto prévio) e disposto (não desiste facilmente), com uma namorada troféu (Linda, papel de Sarah Gadon que sequer chega a ser uma personagem propriamente dita) e idolatrado pela juventude (representado pelo valor do seu autógrafo). Não há nuances, de modo que as relações do piloto são irrelevantes (sobretudo com Linda) e até mesmo seu trabalho causa indiferença (como quando muda de veículo). A priorização dos carros não seria tão problemática se as cenas protagonizadas por eles fossem melhores: o clímax, além de graficamente sensacionalista, se aproxima de produções de baixo orçamento (o que não é o caso).
Baseado no livro de Brock Yates, Troy Kennedy Martin elabora um roteiro absolutamente incapaz de desenvolver as personagens femininas. Isso, a bem da verdade, é característica da filmografia de Mann, acostumado com uma masculinidade autopoiética, aqui perceptível, por exemplo, na cena no barbeiro, conduzida por um diálogo de provocações recíprocas e limitado a automobilismo e futebol. A pobreza do script está nas coadjuvantes demasiado simplórias: Penélope Cruz dá vida a Laura, uma esposa amarga e violenta; Shailene Woodley faz de Lina o oposto de Laura, de modo que o filme grita para o espectador que Enzo encontra na segunda o que não tem na primeira (e também vice-versa). A doçura e a calmaria de Lina se corporificam pela residência bucólica, de recintos menores quando comparados aos da casa de Laura, e sem empregados, novamente um grito de que as duas são opostos. Evidentemente, não é um defeito que elas assim o sejam, mas que não tenham personalidade desenvolvida.
Quanto a Enzo, é positivo que o longa construa um protagonista com conflitos de diferentes níveis. Externamente, há o problema da falência da empresa (e, por consequência, o atrito com Laura); internamente, ele ainda sofre o trauma da perda do filho. Isso faz com que ele seja antipático (como ao ignorar de Portago) e lide com a imprensa de uma maneira bem específica (combativa, manipuladora etc.), cenário que justifica a empresa como prioridade (é só o que lhe resta, na sua ótica). Com uma caracterização de envelhecimento relativamente boa (o penteado é bom, mas a maquiagem pensa apenas nas rugas na testa, ignorando outras regiões do rosto), Adam Driver talvez seja o que “Ferrari” tem de melhor, suprindo um texto limitado para interpretar um homem que prefere a empresa à vida pessoal porque só naquela enxerga um legado. Aliás, por falar em legado, há filmes de automobilismo que deixam algum, servindo de combustível para os seguintes, como “Ford vs. Ferrari” e “Rush – no limite da emoção”. Não é o que ocorre com o novo filme de Michael Mann.
* Filme assistido durante a cobertura da 47ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.