“FÁBULAS RUINS” – De repente, um boom [44 MICSP]
Gostando ou não de FÁBULAS RUINS, trata-se de um filme estranho – e este é também o seu objetivo. Não é (puramente) entretenimento, não é (puramente) reflexão, é cinema com uma sensação de que algo está fora do lugar. Não há um incidente incitante, não há uma narrativa convencional com introdução, desenvolvimento e conclusão. Tudo simplesmente acontece e, sem que se perceba, a sessão acaba.
O narrador encontra o diário de uma menina. Escrito com caneta verde, o texto relata fatos banais. O que o ele oculta e revela apenas ao final são fatos explosivos, envolvendo um grupo de crianças, capazes de abalar a comunidade do interior italiano. Mas o que acontece é apenas resultado da conduta dos adultos.
“Fábulas ruins” adota alguns dos princípios de uma arquitrama, sem se enquadrar muito bem no conceito. Existe uma relação causal entre os acontecimentos, mas ela surge por trás de uma neblina, pois somente visível ao final. O tempo é linear, mas o final não é completamente fechado. São vários os conflitos, na maioria interpessoais. Não há um protagonista claro, de modo que as personagens dividem o protagonismo. A realidade é razoavelmente consistente. O roteiro de Damiano D’Innocenzo e Fabio D’Innocenzo é diferenciado.
A carga emocional da ideia governante é pessimista, talvez como um alerta acerca dos cuidados que as crianças demandam. Do ponto de vista valorativo, o script é bastante denso, ainda que, narrativamente, ele exagere no suspense. Não se sabe ao certo o que vai acontecer, mas que algo ruim vai acontecer. Não se sabe por que algo ruim vai acontecer, mas os motivos estão expostos de maneira crua, sem ocultamento. A trilha musical se encaixa adequadamente com a sensação de estranhamento que os diretores querem transmitir, o que é reforçado pelo uso de lente grande-angular, distorcendo a realidade vista pelo público. No aspecto visual, bem como no sonoro, tudo é esquisito no filme.
As crianças são reprimidas pelos pais. Viola (Giulia Melillo) “precisa se esforçar mais”, mas a situação de Alessia (Giulietta Rebeggiani) e Dennis (Tommaso Di Cola) não é exatamente confortável. Os irmãos são expostos pelos genitores como se fossem troféus, enquanto Viola sofre uma punição que faz com que se sinta constantemente desnudada. Os elogios de Geremia (Justin Korovkin) podem deixá-la encabulada, mas não são suficientes para reduzir o sofrimento causado pelos pais. Por sua vez, Geremia é forçado a ser o orgulho do pai em tudo, ainda que precise fazer silêncio para que a expectativa pareça correspondente à realidade.
São muitas camadas em “Fábulas ruins”. A masculinidade é sórdida: dois homens comentam, sussurrando um para o outro, o que fariam com uma mulher que foi a um evento social supostamente sem calcinha (leia-se, falam obscenidades). A filmagem ocorre através de closes nos olhos, é claro, pois tais grosserias não podem ser públicas. Certamente não foi com o pai que Geremia aprendeu a ser tão gentil. Ou seria a gentileza uma aparência completamente distinta do real?
Os pais são agressivos; as mães, inertes. A violência é resposta para perguntas não desejadas: Bruno (Elio Germano) trata os filhos como objetos que podem ser levados para onde ele quiser; se os objetos assumem a posição de sujeito, como no caso de Dennis, a repressão é através da agressão – e o choro de Alessia de nada adianta. O sexo é um objeto estranho para pré-adolescentes que não sabem como agir na idade em que estão. Existe o interesse, mas não há um adulto confiável para orientar de maneira saudável. A inveja é normalizada: como pode o vizinho ter uma piscina e se tornar o centro das atenções do bairro?
O “cuidado com estranhos” é deixado de lado. Vilma (Ileana D’Ambra) pode não ser perigosa para Dennis, mas há algo nela que causa um magnetismo no garoto. As pulsões da libido começam a se manifestar através de olhares. Uma simples bolacha pode ganhar conotação sexual para um pré-adolescente. O professor poderia ser a pessoa de confiança para tratar de assuntos como esse, mas ele tem outras preocupações. O visual da película pode ser colorido, com a prevalência do verde e do vermelho, porém a fotografia escurecida aponta na outra direção. De fato, “Fábulas ruins” não é uma história alegre e feliz.
O objetivo da produção não é encantar. Sua proposta, cumprida com êxito, é de causar desconforto. O estranhamento vai dos primeiros minutos aos últimos, que são mais potentes em relação à ideia governante. O filme acaba mais rápido do que se espera, principalmente porque não há uma progressão narrativa. De repente, um boom. Cabe ao espectador digeri-lo e, quem sabe, perceber que tudo estava sendo visto, sem que a situação mudasse. O resultado, assim, acabou sendo inevitável.
* Filme assistido durante a cobertura da 44ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.