“EUROPA” – Sobrevivência alienante
* Filme assistido na plataforma da FILMICCA (clique aqui para acessar a página)
No mundo contemporâneo, as questões da imigração e dos refugiados criam problemas graves de difícil solução. Como lidar com os fatores repulsivos que obrigam tantas pessoas a deixarem seus países de origem (guerras, epidemias, desastres ambientais, perseguições…)? Como enfrentar as mazelas impostas nos países para onde os imigrantes se dirigem (xenofobia, violência física, exclusão social, intolerância religiosa…)? Este cenário pode afetar, por exemplo, os muçulmanos que buscam melhores condições de vida em outros continentes, algo que serve de substância básica para EUROPA. Se o tema gera reflexões sociais, políticas e econômicas imediatas, a coprodução Iraque, Kuwait e Itália propõe uma experiência sensorial de luta precária pela sobrevivência sem os meios necessários para tal.
Mesmo não sendo exatamente uma história baseada em fatos específicos da vida de alguém, o filme reúne uma série de informações, dados e vivências próprias de indivíduos que tentam imigrar, legal ou ilegalmente, para o continente europeu. As expectativas de uma vida melhor fizeram Kamal fugir do Iraque e tentar entrar na Europa. No entanto, passar pela fronteira entre Turquia e Bulgária se revela uma tarefa perigosíssima, já que mercenários locais estão caçando imigrantes. Conseguindo escapar dos perseguidores, o jovem precisa sobreviver sozinho em uma floresta enquanto as perseguições continuam.
Inicialmente, a trama parece se interessar pelos aspectos sociais das migrações e colocar em destaque um grupo extenso de personagens. Os letreiros da abertura apresentam as dificuldades do processo de imigração de muçulmanos para a Europa, principalmente as chantagens feitas por funcionários governamentais e as violências praticadas por grupos xenófobos contrários à chegada de estrangeiros. Em seguida, diversos imigrantes são filmados tentando atravessar a fronteira para a Bulgária e sendo surpreendidos pela aparição de mercenários. Durante a fuga, o cineasta Haider Rashid evidencia uma proposta diferente das impressões iniciais: Kamal passa a ter mais destaque e a câmera mantém ângulos fechados nas reações do protagonista. Sendo assim, os espectadores são levados a experimentar a desorientação aflitiva de um jovem cercado por todos os lados por luzes ofuscantes de veículos, ruídos de pessoas em fuga e sons de gritos e tiros. Ao conseguir escapar daquela ameaça, ele busca refúgio em uma floresta, onde as escolhas formais são preservadas e potencializadas.
Haider Rashid conta uma história de luta pela sobrevivência na qual as decisões estilísticas criam uma imersão capaz de proporcionar ao público um conjunto de sensações semelhantes ao de Kamal. Por consequência, o uso constante de planos médios e closes, a câmera na mão, os cortes rápidos, os movimentos instáveis da objetiva e a baixa profundidade de campo estabelecem uma conexão emocional com o protagonista. Então, é possível se aproximar das dores dos ferimentos, da exaustão provocada pelo esforço de se esconder no local e da angústia decorrente do surgimento de alguma ameaça. Além disso, enquadramentos tão fechados e o desfoque no cenário ao fundo concentram a ação em Kamal e aumentam a tensão por impossibilitar a visualização do que acontece ao redor (em que parte da floresta ele está? alguém está se aproximando?). Quando a profundidade de campo é ampliada para mostrar em detalhes o local, as lentes utilizadas são grande angulares que deformam as laterais do quadro, o que também evoca as emoções turbulentas do jovem em um momento de vertigem.
O envolvimento emocional depende do trabalho de Adam Ali. Como o princípio dramatúrgico é mostrar um homem tentando sobreviver apesar de ignorar o que ocorre a sua volta, o ator precisa de um alcance dramático que segure a atenção do espectador e seja sempre captado pela câmera. Se o personagem não consegue controlar as condições da floresta onde está para se manter seguro, o público também fica alienado dos fatores ao redor de Kamal. É possível apenas observar sua relação com a natureza e suas estratégias para permanecer vivo, como tomar banho na cachoeira, procurar alimentos, esconder-se em uma árvore e improvisar curativos. Em sua atuação, predomina um trabalho corporal, já que, na maioria das cenas, está sozinho e não pode conversar com alguém. Logo, Adam Ali aparece frequentemente se esgueirando pelo solo ou pelas pedras da cachoeira para não ser visto, respirando com dificuldade, fazendo grande esforço físico para suportar seus ferimentos e tentando se adaptar à natureza. Em contrapartida, o ator também cria nuances emocionais específicas quando passa por conflitos internos causados pelo contraste entre o que gostaria de fazer e o que é forçado a fazer, por exemplo ao ter que pegar os tênis de um imigrante morto na travessia pela fronteira.
Em momentos pontuais, Kamal não é o único personagem em cena. Ele se depara com mercenários que perseguem imigrantes fugitivos naquela floresta ou com uma pessoa que poderia ajudá-lo a escapar da perseguição mortal. Cada uma dessas aparições segue o mesmo princípio estético de surpreender o protagonista e os espectadores por revelar abruptamente algo que estava fora de quadro ou fora do enquadramento fechado em torno do jovem. Em todas as sequências, não se pode saber exatamente o que irá acontecer porque a câmera aliena o público e o deixa apreensivo até a ação ser finalizada: na primeira, fica a dúvida se o esconderijo na árvore é eficiente; na segunda, fica a incerteza se o embate contra um mercenário pode gerar consequências piores; e na terceira, não há garantias se o pedido de ajuda é confiável. A última sequência em questão é a mais expressiva, pois combina o plano de longa duração, o enquadramento fechado em dois personagens em um carro, os sons enigmáticos do rádio do veículo e o suspense em torno do desfecho da situação.
Após enfrentar desafios da própria floresta e de seus perseguidores, Kamal precisa aceitar que seu maior objetivo é resistir ao máximo às intempéries do local onde se refugia. Nesse sentido, o esforço de obter alimentos o faz sofrer com outro perigo que aparece repentinamente no terceiro ato. Os últimos minutos do filme intensificam as características formais da experiência sensorial de uma luta pela sobrevivência sujeita aos riscos de um ambiente sob o qual não se tem qualquer controle nem conhecimento. A câmera se fecha cada vez mais no rosto ou no corpo do protagonista, as informações sobre o cenário e os demais personagens são subtraídas, a fisicalidade de Adam Ali é ressaltada com uma entrega corporal nada romantizada e a tensão resultante da incerteza quanto ao destino do jovem atingem o auge. Todos esses elementos deixam o espectador dividido entre o otimismo de ver Kamal enfim ser ajudado e o pessimismo de observar mais uma tragédia se abater sobre ele. Em suma, os sentimentos conflitantes conferem à experiência dos imigrantes em um contexto desfavorável uma carga sensorial particular e desafiadora para se viver e assistir.
Um resultado de todos os filmes que já viu.