“EU, TONYA” – Multidimensional, mas efêmero
O marido foi o responsável? Ou foi ela mesma? Ela sabia o que seria feito? Embora EU, TONYA não seja exatamente um filme que se proponha a solucionar uma investigação mal resolvida (pelo menos não parece ser esse o seu objetivo prioritário), sua grande virtude é a multidimensionalidade, algo um tanto raro nas cinebiografias.
A protagonista do longa é a patinadora artística Tonya Harding, que precocemente demonstra potencial para o esporte do gelo, o que faz com que sua mãe a leve para iniciar aulas desde os quatro anos. O longa acompanha então o que ela alcança e o que sofre na carreira, o que aguenta com a violenta mãe e o que aceita se submeter com o insano marido [o que não é spoiler, já que tudo isso é anunciado nos primeiros minutos].
Na esteira da hibridização dos gêneros, o filme acaba sendo um docudrama cômico: possui um tom documentarista ao se basear em fatos reais, inclusive simulando depoimentos dados por envolvidos (na verdade, são os atores, além disso, o recurso tem mais uma utilidade, que ainda será mencionada); o fio condutor da trama é inegavelmente dramático, pois a vida de Tonya é constituída de altos e baixos tanto na carreira quanto no relacionamento afetivo; existe, ainda, um alívio cômico, que é o sarcasmo ácido da mãe da protagonista, uma personagem deveras singular.
Provavelmente, de todas as personagens do longa, a mais fascinante é LaVona Harding, mãe de Tonya. Sua conduta pode não ser elogiável (e de fato não é), todavia, é a que tem a personalidade mais intrigante. Se é proibido fumar no gelo, LaVona fuma “discretamente”, ou seja, continua fumando. Se ouve um não, insiste até convencer a outra pessoa do contrário. Se existem crianças no recinto, isso não a impede de falar palavras de baixo calão, pois ela é quem é e como é não importa o local ou a companhia. Se o relacionamento com a filha é conturbado é porque esta é frágil em demasia, pois LaVona considera tê-la preparado para ser a melhor. Realmente, a cobrança começou desde muito cedo, ensinando que colega é inimiga. Seus métodos heterodoxos é que eram problemáticos: se Tonya perdia uma competição era por falta de esforço, isto é, uma vergonha. Sua cobrança era absurda, física e psicologicamente torturante e sem nenhum afeto: era uma mãe que enxergava a filha como máquina, não como um ser humano. Era exigente em excesso porque investia em Tonya, o que fazia com que ela se visse legítima a exigir o retorno, que precisava ser certo. Em última análise, é o arquétipo da mãe (ou pai) que cobra nada menos que excelência dos filhos nos quais investem. A mãe (ou pai) que faz isso não vai se identificar e vai pensar que o filme monta uma hipérbole – contudo, não deixa de ser uma crítica velada à criação dos filhos, muitas vezes tão fiel à máxima maquiavelina que se torna desumana. A interpretação soberba de Allison Janney torna claro o limite entre o papel de uma mãe cruelmente rígida e a inverossimilhança: se fosse além, a atriz recairia no segundo caso. Mas não, Janney acerta o tom, transmitindo a presunção de LaVona com maestria, fazendo com que seu sarcasmo seja sempre realista.
Apesar de ser a protagonista, Tonya não chama tanto a atenção, pelo fato de ser mais comum (isto é, não é tão “singular”, como dito, quanto a sua mãe). Quando criança, é vivida pela pequena Mckenna Grace, que já tinha mostrado seu carisma em “Um Laço de Amor”. Sua Tonya é um prodígio, apaixonada pela patinação artística no gelo, que só fala isso, segundo a mãe. Estranhamente, isso não chega a aparecer no filme, o que passa a impressão de que é a mãe que força a filha a se dedicar (ao menos naquela medida) ao esporte. Tanto é assim que, para seu futuro, ela não planeja ser apenas patinadora profissional – ou seja, não é a obsessão que LaVona fala. (seria uma falha do roteiro?). De todo modo, é a versão adulta da protagonista que realmente interessa, mais pela atriz que a interpreta do que pela personalidade da personagem. Isso porque a personalidade de Tonya é comum, de uma mulher que admite não ser muito feminina (a ponto de mexer no motor de um carro e limpar as mãos na própria calça), que convive com a violência desde criança e também suporta agressões desde criança e que (principalmente) revela uma enorme carência afetiva. Quando criança e na adolescência, é agredida (física e verbalmente) pela mãe; quando cresce, passa pelo mesmo com aquele que se torna seu marido, Jeff (porém, muitas vezes revidando). A diferença é que, com Jeff, ela viveu bons momentos. A atriz que dá vida à protagonista é Margot Robbie, certamente no melhor papel da sua carreira, o que não é difícil, já que, até agora, ela não fez nenhum trabalho que mereça grande reconhecimento. Entre atuações ruins (como em “Golpe Duplo”) e no máximo medíocres (como em “O Lobo de Wall Street”) – sua Arlequina de “Esquadrão Suicida” é um overacting fácil para qualquer atriz bem caracterizada -, Robbie está muito bem no papel de Tonya, mas talvez superestimada por alguns, que a colocam no mesmo nível de Sally Hawkins e Frances McDormand, destaques maiores da temporada. A cena em que a atriz se maquia em frente ao espelho forçando um sorriso enquanto sua emoção é a tristeza é prova da sua boa interpretação, fato que não se pode negar, o que não significa, por outro lado, que foi a melhor atriz da temporada, porque não foi.
As outras personagens não chamam a atenção. Sebastian Stan, mais conhecido como Soldado Invernal, atua como Jeff, marido de Tonya, encarando bem a insanidade que o papel exige em razão do incompreensível amor nutrido por ela. O que eles têm é uma relação complexa que só faz sentido para eles. Como suposto alívio cômico, Paul Walter Hauser interpreta Shawn, o guarda-costas de Tonya, que serve para o papel do pateta clichê que as dramédias adoram. Ao que parece, o retrato no longa foi fidedigno (quando comparado ao Shawn da vida real, que aparece durante os créditos finais), o que não muda o fato que faz um humor estúpido e ultrapassado.
Como já dito, Margot Robbie chegou, no máximo, ao nível medíocre na carreira, encontrando em “Eu, Tonya” a oportunidade para subir vários degraus. Ironicamente, algo semelhante ocorre com Craig Gillespie: o diretor faz desse longa o melhor da sua carreira (que já conta com dez anos). Seu primeiro filme foi “Em Pé de Guerra”, com um elenco qualificado (Billy Bob Thornton, Seann William Scott e Susan Sarandon), mas cujo resultado final foi sofrível. Seguiram-se a ele obras ruins até chegar ao frágil “Horas Decisivas”, que era o melhor até 2016. Nesse sentido, o que Gillespie faz em 2017 é notável, transformando uma cinebiografia simples em um filme que consegue, à sua maneira, chamar a atenção. Mesmo as cenas no gelo são bem filmadas, com um visual belo e sem abuso de slow motion (apenas em um momento histórico).
O uso variado, na película, de recursos de linguagem cinematográfica, a tornam um fenômeno formidável e muito mais dinâmico. Já foi mencionado que as personagens aparecem nos minutos iniciais, como se fossem entrevistadas (ou dando depoimentos), simulando um documentário. A ideia é dar à trama pontos de vista diferentes, de modo que Tonya, Jeff, LaVona, Diane (professora de Tonya, interpretada por Julianne Nicholson) e até mesmo um repórter, ou seja, colocando pessoas que participaram dos fatos com maior ou menor proximidade (em especial o do clímax, que teve cobertura midiática). É assim que as personagens aparecem sozinhas falando diretamente para a câmera, o que não deixa de ser uma quebra da quarta parede. O mais impressionante é que o longa tem a ousadia de mesclar narração voice over com quebra da quarta parede pela mesma personagem: enquanto a ação ocorre, ouve-se a voz (narração voice over) de uma personagem envolvida (relatando algo), personagem que, repentinamente, para de participar da cena, com o fim de falar diretamente com o público, olhando para a câmera (quebra da quarta parede). Em determinado momento, as técnicas se cruzam: uma personagem aparece dando um depoimento, volta para a cena comum, com narração voice over, que é cortada para uma quebra da quarta parede por uma das personagens. Não é um recurso completamente novo, mas está longe de ser usual, é subversivo e controverso. Ou seja, é positivo na sétima arte. Chega a ser ironizado pelo próprio filme, como quando Tonya corta o depoimento alheio ou quando LaVona reclama que seu arco dramático é esquecido pelo roteiro.
Além do que já foi mencionado, há um design de produção acertado na película, o que não é fácil quando se trata de uma época não tão distante. A maquiagem também é boa, em especial para envelhecer os artistas, sem soar artificial em demasia (exceto no pescoço da versão envelhecida de Tonya, com rugas escancaradamente falsas colocadas em Robbie). A trilha sonora é quase uma personagem a mais, constantemente dialogando com os acontecimentos. Por exemplo: quando LaVona aparece pela primeira vez, toca “Devil Woman”, de Cliff Richard; no primeiro beijo entre Tonya e Jeff, toca “Romeo and Juliet”, de Dire Straits; e quando o casal tem uma de suas brigas mais brutas, a música é “How Can You Mend a Broken Heart”, de Chris Stills. Isso sem deixar de lado sons instrumentais de Peter Nashel (como “A Fair Shot” e “Tonya Suite”) e músicas como “The Passenger”, de Siouxsie & The Banshees (um pop-rock), “Barracuda”, da banda Heart (um rock mais pesado), “Dream a Little Dream of Me”, de Doris Day feat. Paul Weston (um clássico do jazz que faz um trocadilho simbólico no plot) e “Sleeping Bag”, de ZZ Top (música bem agitada para Tonya se apresentar).
A única ressalva relevante em relação à obra é que lhe falta transbordar a própria história. Ainda que trate sobre criação dos filhos e de violência doméstica, considerando a dedicação extraordinária da patinadora (a verdadeira) ao esporte, há que se honrar essa dedicação, concluindo-se que o mote temático da película é uma crítica ao american dream. Desenvolver essa ideia demandaria revelações do enredo e potenciais spoilers, logo, melhor não prosseguir. Basta dizer que, a despeito da multidimensionalidade mencionada no primeiro capítulo, isto é, apesar da boa execução técnica, o filme é um entretenimento fatalmente efêmero, não tendo o condão de deixar o espectador refletindo sobre nada que é lá retratado. Diverte, mas morre quando acaba a sua duração.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.