“ESTÁ TUDO BEM” – A sobriedade do lado fúnebre da existência
O tema de ESTÁ TUDO BEM é complexo e desenvolvido com a necessária profundidade. As personagens revelam o quão multifacetado pode ser o assunto, que tem um ponto de vista principal, daquele que deseja, e pontos de vista periféricos, daqueles direta ou indiretamente envolvidos. Não há apenas o afeto, tampouco somente a dignidade; é preciso refletir sobre a miríade de perspectivas que a eutanásia envolve, uma reflexão sóbria, não um espetáculo.
Aos oitenta e cinco anos e depois de um AVC, André decide que não quer mais continuar vivendo. Ainda no hospital, ele pede para que uma de suas filhas, Emmanuèle, o ajude nos arranjos burocráticos que envolvem o suicídio assistido. Tanto ela quanto a irmã, Pascale, enfrentam enormes dificuldades para aceitar o desejo paterno – e mais ainda para ajudá-lo.
Apesar de curta, é bastante densa a cena em que André diz para Emmanuèle “quero que me ajude a me matar”. A perplexidade da filha é apenas o primeiro passo para a mescla de sentimentos expressados de maneira excelente por sua intérprete, Sophie Marceau. A atriz compreende que a narrativa não é linear, tampouco unidirecional, o que exige dela uma atuação igualmente embaraçada. O arco dramático da personagem é quase labiríntico, primeiro pela falta de controle (ao menos parcial) quanto aos fatos, segundo pela constante sensação de que não há saída. Para seu marido, Emmanuèle declara que André a coloca contra Pascale tanto por amor quanto por perversidade, o que faz sentido porque mesmo o amor pode ser perverso.
A perversidade do amor parece ser, inclusive, a única direção pela qual André conduziu o carinho familiar. Brilhantemente, André Dussollier transmite o vaivém corpóreo de sua personagem, que, todavia, mantém constantemente o vigor da própria vontade de morrer. Emmanuèle pode pular na cama se ele tiver uma melhora, isso não vai mudar o seu desejo porque as circunstâncias da sua frágil condição de saúde já o convenceram de que ele, nas suas palavras, “não é mais ele”. A agressividade de André – seu temperamento, de fato, é difícil de lidar – pode soar como um resultado da sua vulnerabilidade, porém os esparsos flashbacks deixam claro que ele nunca foi verdadeiramente afetuoso. Ainda que elogie a beleza da filha, não pode deixar de ressaltar que ela era feia na infância. Durante sua vida, André não abriu espaço para um amor generoso, o que explica a insistência de sua esposa, Claude (Charlotte Rampling, imponente mesmo em papel discreto), na cor cinza.
Como uma metáfora visual para a onipresença do ambiente de hospital, François Ozon abusa da cor azul – especialmente em tons ágata e geleira – no design de produção de seu filme. Enquanto o design sonoro é minimalista, com a quase exclusividade de sons intradiegéticos, a estética visual é bastante expressiva ao associar Emmanuèle ao azul. É significativo, também, que as cores rubras prevaleçam em sua casa (roupa de cama, móveis da cozinha), símbolo do calor que é a sua residência quando comparada à frieza azulada do hospital (e mesmo de seu pai). Na primeira cena em que ela conversa com André após começar a aceitar a ideia, a protagonista está de branco, abraçando a paz que pode ter com essa aceitação.
Baseado no livro de Emmanuèle Bernheim (a verdadeira), o roteiro de Ozon não é romantizado em momento algum. As datas que o cineasta coloca na tela ajudam a perceber o quão veloz tudo pode acontecer, com uma atenção maior aos primeiros dias posteriores ao AVC. O texto coloca o foco no lado prático da narrativa, seja pelos diálogos (sobre testamento, enterro etc.), seja pelos eventos em si (uma crise à noite, banhos com auxílio de enfermeiras…) ou mesmo por envolver terceiros (como familiares distantes e o advogado). A dramaticidade é inerente à própria narrativa, que dispensa artificialidades para emocionar.
Assim como Pascale (Géraldine Pailhas, sem destaque) é a representação da relutância, cada personagem encarna um olhar singular sobre a situação de André, com maior ou menor envolvimento. Quem mais se envolve é Emmanuèle, apresentando-se como aquela que, após um conselho, tenta encarar o pai como um amigo; quem menos se envolve é Claude, que encontra segurança na distância de tudo. André não pensa como Robert, o vizinho de quarto, que acha que ele tem sorte por ter uma filha como Emmanuèle. O filme procura dar espaço para as diferentes vozes, mesmo que com predominâncias, para demonstrar que a eutanásia objetivada por André é um assunto deveras intrincado. Não é o melhor trabalho da filmografia de Ozon, inclusive destoa das suas temáticas mais reiteradas, mas é um retrato sóbrio do lado fúnebre da existência – fúnebre, mas não macabro. Emmanuèle pode gostar de ver o gore na ficção, mas a vida real não é o mesmo espetáculo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.