“ESQUECERAM DE MIM” – Então é Natal
Quando se fala em filmes natalinos, ESQUECERAM DE MIM pode não estar no panteão dos clássicos cult como “A felicidade não se compra” (clique aqui para ler a nossa crítica), mas é com certeza um filme marcante. A produção é digna de nota não apenas pelo sucesso com o público, tampouco por suas qualidades cinematográficas, mas especialmente por ser um dos filmes que melhor entende o espírito natalino.
Com apenas oito anos, Kevin é esquecido sozinho em casa pela sua numerosa família, que viaja para Paris no período do Natal. Enquanto aproveita o lar na ausência de supervisão, descobre que uma dupla de ladrões que está atuando no bairro planeja invadir a sua casa, o que ele não pretende permitir.
O Natal é uma época com músicas marcantes. John Williams assina a esplendorosa trilha de “Esqueceram de mim”, inserindo desde as clássicas “Rockin’ around the Christmas tree” (Brenda Lee), “White Christmas” (The Drifters) e “Have yourself a merry little Christmas” (Mel Tormé) até músicas originais. O diálogo das canções com as cenas é notório, como por exemplo “Run, Rudolph, run” (Chuck Berry) na cena em que a família de Kevin corre pelo aeroporto. É perceptível que as originais de Williams são bastante similares às de “Harry Potter e a pedra filosofal”, filme de 2001 que também leva a trilha do renomado músico. A semelhança não é mera coincidência: não apenas existe um espírito similar nas películas (uma criança em uma aventura) como o diretor também é o mesmo.
Existe uma aura mágica no período natalino. Tanto em “Harry Potter” quanto em “Esqueceram de mim” Chris Columbus consegue traduzir a magia pela mise en scène. Uma simples necessidade de acelerar para não perder o voo se torna quase um truque de ilusionismo com o uso de fast motion embalado pela instrumental “Holiday flight”. O vento na rua faz bater a guirlanda, o silêncio da casa abandonada é cortado bruscamente pela montagem, que muda para o barulhento avião levando a família de Kevin a Paris. Kevin não esperava encontrar sua casa vazia, assim como Harry não esperava o convite para Hogwarts – o incidente incitante é similar. O esperado não ocorre: Harry não recebe a carta para a escola; um vizinho é contado equivocadamente pela irmã como se fosse Kevin (um truque simples da direção, mas muito eficaz).
Não há Natal sem suntuosas decorações. O design de produção de John Muto recheia amplamente a casa da família de Kevin, afinal, muitas pessoas moram lá. É uma casa cheia de adereços; lá fora, a decoração da época, que é muito valorizada na cultura estadunidense, encanta ao contrastar com a neve (também típica para o período no hemisfério norte). O vermelho e o verde, cores tradicionais natalinas, são fartas: a poltrona, a roupa de cama, a passadeira e o cachecol (vermelhos); a parede, a toalha e o agasalho (verdes).
É comum associar as crianças ao Natal, pois são elas que mais se alegram com os presentes. Kevin é uma criança típica: quer ver filme inapropriado para a idade, sofre um bullying dos irmãos mais velhos, se esbalda ao praticar travessuras e se deliciar com um sorvete enorme. Já que não há ninguém em casa, o melhor a se fazer é aproveitar. Macaulay Culkin é um prodígio da atuação, sobrando expressões que designam os sentimentos extremos de uma criança. Olhos esbugalhados quando percebido pelo assustador vizinho, sobrancelhas apertadas para o sorriso do estranho policial com um dente de ouro e sorriso sagaz ao concluir que a casa está vazia – o arsenal cênico de Culkin é surpreendente para alguém da sua idade (e talvez sua atuação seja o que o filme, que já é excelente sem ela, tem de melhor). Todos têm uma criança dentro de si, mesmo Harry (Joe Pesci, divertidíssimo) e Marv (Daniel Stern, também divertido, mas em menor medida). O primeiro fica encantado com um carrinho de controle remoto e uma luneta com os quais brinca na casa invadida; o segundo é um criminoso megalomaníaco que acha que a torneira aberta pode ser a assinatura da dupla – o que acaba sendo uma inteligente arma de Chekhov do roteiro de John Hughes.
A festa natalina é divertida, leve e agradável. A comédia de “Esqueceram de mim” é tanto corporal quanto textual. Na perspectiva visual, as engenhocas criadas por Kevin para enganar os vilões revelam uma inteligência sem igual, mas a suspensão da descrença faz parte do Natal (o que seria do Papai Noel sem ela?). O grito de Marv ao encontrar a aranha de Buzz é hilário, muito mais engraçado que o encontro da mãe de Kevin com o grupo da polka – mas que também é engraçado, porque no Natal nem tudo precisa ter intensidade extrema. É possível rir da reação do menino ao ver uma revista Playboy da mesma forma com que se ri do pavor do entregador de pizza ao ouvir falas que não correspondem ao que ele pensa. A ilusão traz o riso e o riso é como se fosse um abraço dado em si mesmo – é disso que se trata o Natal, aliás.
O Natal é o período de reunir a família em paz, abandonando todas as desavenças e apagando os rancores. O roteiro de Hughes usa o tema familiar em várias dimensões, notadamente o subtexto dos pais irresponsáveis (que tentam solucionar tardiamente o problema que provocaram) e, em especial, a mudança de pensamento de Kevin sobre o sumiço da família. Na mesma cena, ele diz: “fiz minha família desaparecer”. A fala, porém, tem duas conotações bem distintas (e que novamente Culkin executa a diferença com maestria) – primeiro, como surpresa, depois, como alegria. Tarda, mas não falha: isso não é bom. Natal não é Natal sem a família (na mais ampla concepção do termo), o que o protagonista aprende bem o suficiente para aconselhar outra personagem. As palavras têm muita força e devem ser usadas com sabedoria. Independentemente da idade, desejos manifestados nem sempre correspondem ao que verdadeiramente se quer. “Esqueceram de mim” tem como ideia governante aquela segundo a qual sempre é possível corrigir palavras proferidas erroneamente. Não há época mais propícia para isso do que 25 de dezembro. Feliz Natal ao público do Nosso Cinema.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.