“ESPIRAL: O LEGADO DE JOGOS MORTAIS” – O legado de uma ideia
“Eu quero jogar um jogo”. Nos anos 2000, os fãs do cinema de terror certamente ouviram essa frase sair da boca de Jigsaw ou de seus ajudantes nos filmes “Jogos mortais“. Além dela, as reviravoltas nos finais das tramas, os dilemas morais a respeito de sacrifícios, redenções e sobrevivência, as armadilhas variadas, o gore e escolhas estéticas marcantes para a fotografia e a trilha sonora se tornaram elementos clássicos para o universo. Porém, o tempo e a transformação em franquia desgastaram consideravelmente a proposta, que se arrastou por seis filmes sendo um torture porn de plot twists interessados em explicar tudo ao público. Por conta dessa trajetória, o que ESPIRAL: O LEGADO DE JOGOS MORTAIS poderia trazer de novo a uma franquia há muito estagnada?
Uma possibilidade de resposta a essa questão poderia vir de Chris Rock, ator e comediante que sugeriu a ideia do projeto para os diretores do estúdio Lionsgate. Segundo declarações durante a campanha de divulgação, o estúdio acreditava que o mundo de Jigsaw seria reimaginado para um futuro promissor. Tudo se inicia com a união do detetive Zeke ao parceiro novato Willem para desvendar uma série de assassinatos cruéis na cidade. À medida que as investigações avançam, fica nítido que o serial killer imita os métodos de Jigsaw, apesar de as motivações serem relativamente diferentes.
Por um lado, é um ponto positivo trazer de volta para a direção Darren Lynn Bousman, responsável pelos segundo, terceiro e quarto (embora estes já conduzissem a franquia para o declínio). O retorno do diretor pode ajudar a compreender por que essa obra dispensa as reviravoltas grandiosas e o escopo mais extenso dos planos dos vilões, assim como a história mais contida escrita por Pete Goldfinger e Josh Stolberg. Além disso, a ideia apresentada por Chris Rock (atuando também como produtor) conseguiu renovar alguns aspectos da mitologia original, o que permite novas possibilidades para um novo contexto e diferentes sentidos para símbolos clássicos: as mensagens do assassino são gravadas não apenas em fitas mas também em pen drives, a voz distorcida para explicar as regras do jogo tem um tom distinto ao de Jigsaw e as máscaras/bonecos têm as feições de um porco. Tais alterações não criam uma dependência total em relação à personagem icônica e ainda evocar o conflito dentro da força policial.
No entanto, sob outro ângulo, a narrativa parece tímida nos momentos em que poderia remeter às torturas tão comuns na franquia, Tornou-se recorrente ao assistir “Jogos mortais” ter a expectativa de ver armadilhas cada vez mais inventivas e brutais, que desencadeiam sensações típicas do gore graças ao choque de exposição de sangue, vísceras e ferimentos dolorosos. Ao invés de manter o estilo, a obra sugere mais do que expõe o resultado da violência (apesar de algumas sequências, como a de abertura, enquadrarem a brutalidade de modo frontal), por vezes deslocando o foco da câmera para outros elementos do quadro ou cortando a cena antes da culminância das torturas. Ao mesmo tempo, a movimentação frenética dos enquadramentos enquanto as personagens torturadas se debatem em desespero e a combinação entre montagem paralela e trilha sonora tensa são recursos empregados sem a mesma expressividade já vista anteriormente, tal qual uma característica simplesmente sem efeitos dramáticos significativos.
Se a reimaginação de certas marcas consolidadas de “Jogos mortais” tem méritos, o mesmo não pode ser dito acerca do formato da dramaturgia. A grande ideia transformadora de Chris Rock não passa de tornar uma história de terror em um thriller policial genérico pautado nos clichês mais empobrecidos do subgênero. Isoladamente, as subtramas já tem pouco a oferecer de original ou ressignificado e, em conjunto, elas são empilhadas uma em seguida da outra de maneira excessiva pelo roteiro. Zeke é o policial de métodos muito próprios que desagrada a capitã a ponto de colocar um parceiro ao lado dele; o parceiro Willem parece ter uma personalidade muito diferente, criando uma dinâmica de opostos; o protagonista é mal visto na corporação por ter delatado um colega corrupto; a polícia contém muitos agentes envolvidos em atividades criminosas; e Zeke tem uma relação conflituosa com o pai, antigo delegado e referência na instituição. Nos filmes anteriores, havia um segmento de investigação e perseguição aos vilões, mas sem inserir as batidas de uma história policial sobre parceiros, lealdade e corrupção.
O desenvolvimento da narrativa reforça ainda mais a percepção de que a nova proposta não é tão nova assim, pois a abordagem do terror está em uma escala menor e o subgênero policial é encenado de modo bastante convencional. Assim, Darren Lynn Bousman faz referências a títulos como “Máquina mortífera“, “Dia de treinamento” e “Seven – Os sete crimes capitais“, que se esvaziam devido à incapacidade de explorar as citações e imprimir uma atmosfera compatível com elas. O filme de David Fincher é citado a partir de cenas que trazem caixas, embora este uso seja mais evocativo para o thriller policial do que para o universo do horror. Já os demais empalidecem diante da dinâmica entre Zeke e os colegas policiais, incapaz de criar sutilezas, ambuiguidades ou conflitos verossímeis, e de tentativas de reviravoltas surpreendentes até o desfecho com uma crítica social, limitadas a plot twists facilmente antecipados por espectadores com filmes policiais na bagagem cinematográfica – chega a ser risível como o roteiro cria falsos suspeitos para ocultar o verdadeiro culpado.
Mesmo que se possa argumentar que mudanças de gênero não são essencialmente problemáticas, a abordagem policial sofre com um tipo de humor involuntário ou deslocado inserido pelo protagonista. Essa sensação advém da performance de Chris Rock, constantemente destoante do tipo de história desenvolvida como um peixe fora d’água tentando se adaptar sem sucesso a uma realidade distante. Em certos momentos, o ator parece estar nos palcos apresentando seu texto de stand-up sobre “Forrest Gump” e as relações entre homens e mulheres no casamento, jamais justificando como tais monólogos se relacionam à narrativa – em meio a uma operação em que está infiltrado em um bando criminoso e na caminhada em direção a um local de crime, essas falas soam muito mais como esquetes nada orgânicas). Já nas ocasiões em que Zeke entra em atrito com os outros detetives, Chris Rock dá vazão a um overacting explosivo que não é tematizado pela narrativa nem faz parte do arco dramático da personagem – nesse sentido, falta timing a ele e ao restante do elenco para as sequências de discussão e confronto.
A chegada do clímax de “Espiral: O legado de Jogos mortais” sintetiza como a produção é tímida em diversos aspectos. Os elementos de terror já fundados pelo universo anteriormente apresenta uma revelação final de baixo impacto, diferentemente do potencial da montagem e da trilha sonora; e a crítica social pretendida em relação ao “sistema” impõe uma relação apressada com o suposto “legado” de Jigsaw e sofre de uma construção prévia genérica. Logo, a presença da mitologia de “Jogos mortais” parece forçada dentro de um filme que, na realidade, se assume mais como um thriller policial no qual o assassino poderia ser qualquer um. Então, cabem as seguintes perguntas: a nova ideia transformadora partiu da vontade de Chris Rock fazer parte de um franquia da qual é fã? ou esta ideia foi apoiada por um estúdio disposto a continuar lucrando com uma marca desgastada pelo tempo? Para responder, “que os jogos comecem”.
Um resultado de todos os filmes que já viu.